Pode ser morada de outros seres, mas acima de tudo a nossa própria morada, lugar em que gestamos identidade, gestamos sonhos e gestamos o desejo de sermos ouvidas e respeitadas.
Nossos corpos carregam a identidade de outras mulheres, aquelas que nos gestaram. Mesmo que a vida nos tenha levado para outros colos, outros seios e outros corpos casa estamos ligados sempre a alguém seja física ou espiritualmente.
A poeta Ryane Leão em sua poesia identidade nos diz:
“foi uma mulher negra e escritora
de pele e alma como a minha
que me ensinou
sobre os vulcões e as rédeas e os freios
sobre os tumultos dentro do peito
e sobre a importância de ser protagonista
nunca segundo plano
se você encostar a mão entre os seios
vai sentir os rastros de nossas ancestrais
somos continuidade
das que vieram antes de nós.”
Mas o mundo tem algo com nossos corpos, algo de muito doentio se entranha nas mentes e atitudes, pois não conseguimos, enquanto mulheres, apenas ser e estar no mundo sem que nos toquem e nos firam os direitos.
Os últimos dias nos mostraram a banalidade com que nossos corpos são tratados. Mulheres negras desde sempre são expostas, usadas, hipersexualizadas e colocadas sempre na base de sustentação de toda uma estrutura social.
Mulheres negras e não negras têm lutado para que seus corpos sejam minimamente respeitados. As últimas notícias sobre o pagamento de fiança para liberação de acusados de estupros, e a sensação de outros em relação a impunidade nos relembra de que mundo fazemos parte: nos evoca um mundo profundamente problemático e injusto, onde as mulheres, especialmente as mulheres negras, enfrentam uma série de desafios e discriminações. Esse tipo de realidade é tristemente familiar em muitos lugares ao redor do mundo, onde o sexismo e o racismo se combinam para marginalizar e oprimir mulheres.
Nesse mundo, as mulheres negras podem enfrentar uma ampla gama de injustiças, incluindo discriminação no acesso à educação, oportunidades de emprego e cuidados de saúde adequados. Elas podem ser objeto de estereótipos prejudiciais e tratadas como menos valiosas ou menos dignas de consideração do que outras pessoas.
“(…) quantas vezes minha mãe sentou na beira da cama
e me ajudou a retirar os cacos de vidro dos pés
e disse que poucos mereceriam o meu amor
que o mundo me machucaria porque eu tinha nascido
com coração demais
que eu tinha que parar de ser tão boa
ou não me sobraria nada
além dos cacos
que ela arrancava
com cuidado e paciência
plantando flores
no lugar”
Ryane Leão
A banalização dos corpos e da vida das mulheres neste contexto sugere uma cultura que normaliza a violência contra elas, ignorando ou minimizando suas experiências e necessidades. Isso pode levar a taxas alarmantes de violência doméstica, agressão sexual e outros tipos de abuso, com pouca ou nenhuma prestação de contas para os agressores.
Ciclicamente retornamos à luta e à busca por direitos básicos, criamos sistematicamente formas de manifestarmos nossas bandeiras denunciando o que tentam nos fazer: tirar a integridade e o direito a viver à vida segundo o desejo de cada uma.
Somos crianças, mulheres.
Somos pessoas menstruantes, cidadãs, somos livres.
Somos sonhos, potência e ancestralidade.
Somos tecnologia e energia vital.
Somos corpos casa. Deixem-nos viver!
“quem soube de mim em outros tempos
já não sabe de mim agora
pois quando me quebraram
meus pedaços foram arrumando novos lugares
mais lindos e mais fortes
pra se encaixar nessa mulher que hoje escreve
com punhos firmes e nenhuma culpa
de existir como bem quer”
Ryane Leão
Fernanda Oliveira é pedagoga pela UFRGS, mãe, professora, fundadora do Projeto Social Oorun que atua na afrobetização de crianças negras, cofundadora do coletivo de Profes Pretas, gestora de Filosofia e Cultura na Odabá.
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