A paixão decorre de uma abertura estupenda da comporta na matéria. Isso já está provado desde o primeiro século. O que estava fora (no outro) adentra com ou sem parêntese o dispositivo do corpo. Mais do que adentra: invade, esgarça, esparrama. Toma conta do que era antes, impõe (não propõe) sua forma de ser até então, e mesmo os seus conteúdos. Por isso, faz barulho – ri, chora, grita. É o segundo corpo abrindo espaço nos seus materiais para o primeiro. E, como, de acordo ainda com a física não quântica, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, há uma instabilidade tipicamente hormonal em busca de acomodação. Felizmente, dura pouco: o tempo, não muito contente com a bagunça, dispõe de um mecanismo reverso e, sem maior esforço de sua condição (temporal), expulsa o que estava dentro, em busca de homeostase ou acomodação, retomando rapidamente o equilíbrio original. É como um vômito com direito à náusea de se deparar de novo consigo mesmo e todas as faltas, lacunas, imperfeições, insuficiências apagadas por aqueles falsos movimentos. E tudo volta a ser verdadeiramente estático, entre baço e apagado, mesmo sob o sol ali, presente desde sempre.
Felizmente há casos – estatisticamente raros, mas existem – em que o dispositivo segue ativo e se abre novamente, mas agora sem esgarçar. Não está lacrado, tampouco escancarado. São pequenas fendas, ou nem isso: são mínimos buracos onde vai entrando o que está fora, sem mascarar o que é dentro. É muito, muito lento. O tempo agora pode pouco. Não se faz em horas, os segundos ali não se contam, e até os minutos são inoperantes. Estamos falando talvez de meses, de anos certamente, quando o que está fora continua penetrando com o ritmo de um pingo, a persistência de um pelo, a paciência de dois monges maliciosos. E já não é um corpo adentrando outro, embora também seja. São duas almas que evitam qualquer balbúrdia de jorro e quase deslizam no gelo meio aquecido antes por elas. É câmara lenta. Subjetivo. Impossível de descrever, mas a gente tenta. É como um jeito de sorrir que um tinha, uma posição do outro diante do nada, uma postura para ver algo na noite, um modo de dormir todo acordado. São coisas mínimas, tolas ou mesmo imperceptíveis para quem está fora da experiência. E, por mais que seja expressivo – e é –, não há plateia.
O mais incrível, nesses poucos casos, é que a comporta não evita a passagem dos defeitos: um odor azedo na virilha, uma perna abaixo mais curta do que a outra, um excesso de sal no paladar, sem falar nas gordurinhas espalhadas, e assim por diante. No entanto, há um outro dispositivo, capaz de tornar inoperantes cada um desses e de todos os outros defeitos.
Ao norte do Canadá, onde as pesquisas estão mais avançadas, não se consegue ainda explicar o fenômeno, mesmo sabendo que ele existe. As comportas seguirão abertas por anos, às vezes (ainda mais raras) até a morte de um, quando não dos dois. E, antes ou mesmo depois dela, tudo de bom, de ruim ou mais ou menos continua entrando de lá para cá, de cá para lá até que acontece o inverossímil.
Desafiando a lógica da física (mesmo a quântica), e de todas as demais ciências, nós contemplamos o amor, essa arte de duas almas encorpadas ocupando o mesmo lugar.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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