A educação moderna partiu da crença na figura de um homem dotado de uma “natureza” interior, comum a todos os homens e era sobre ela que a cultura – via educação – deveria atuar e imprimir sua marca (a palavra ensinar significa, etimologicamente, marcar com o sinete). Rousseau, um nome fundamental da modernidade educativa, também partia da premissa de que tínhamos uma “natureza interior”, mas que, ao invés de ser reprimida (como para Descartes), deveria ser preservada e protegida o maior tempo possível: em contraponto à hipocrisia social, formar o homem, antes de formar o cidadão, era fazê-lo idêntico a si mesmo, preservando sua sinceridade, sua autenticidade, sua naturalidade, sua espontaneidade, produzindo a imagem romântica de infância na qual acreditamos até hoje.
Residia, assim, em nossa natureza humana uma racionalidade potencial a ser desenvolvida pela educação e pela cultura, racionalidade que permitia, ao mesmo tempo, imaginar-nos como “criatura”, mas dotado de livre arbítrio. Livre arbítrio que nos responsabiliza moralmente e que vai evoluir para o conceito moderno de liberdade, outro atributo do Humanismo. Mas, diferentemente da liberdade dos antigos (gregos), a liberdade dos modernos é, sobretudo, uma liberdade privada e individualizada. Para os gregos, a liberdade se exercia exclusivamente na esfera pública. Entre os Modernos ocorre uma interiorização da liberdade. “Ser livre”, para dizê-lo simplesmente, não é poder fazer tudo o que passa pela cabeça ou para onde apontam nossas paixões (“inclinações”, dizia Kant), ou não ser constrangido por nenhum freio ou restrição: um homem que obedece apenas às suas paixões, é escravo delas. E escravo… é escravo! O sujeito autônomo (na verdade uma redundância) é aquele que segue a divisa kantiana Sapere aude, que o leva da menoridade à maioridade. Como é ele mesmo que se dá a norma, então ele é senhor de si mesmo. Aqui praticamente se fecha o circuito da metafísica da subjetividade: a crença de que dispomos, nós todos, de um aparato racional que nos permite a liberdade, mas também a capacidade de estabelecer critérios da ação moral (universalidade do ato e desinteresse do agente).
Todo este sobrevoo poderia ser resumido assim: um homem dotado de uma essência racional (uma razão que liberta – da tradição, da autoridade, da ignorância, da superstição – que prevê, que define causas, que explica os fenômenos, que classifica, que domina técnica e conceitualmente o conjunto dos entes); uma liberdade de se dar a própria norma individual (moral) ou social (sociedade política, o estado) e uma consciência (cognitiva e moral) que lhe permite julgar, pensar, compreender, lembrar, projetar, examinar-se a si mesma, situar-se num tempo e num espaço ou definir critérios de ação. E, finalmente, um ser dotado de linguagem que lhe permite não apenas comunicar-se com outros homens, formular pensamentos, nomear o mundo em que vive (de forma arbitrária, convencional ou “natural”) e, assim, colocar a “realidade” no interior de sua consciência, partilhando-a com outros homens. Há, assim, dois grandes princípios do Humanismo: universalidade e identidade.
A educação é um destes vetores humanizantes no qual continuamos, por razões diversas, a depositar nossa esperança: basta pensar na ideia freireana de “humanização do homem” e sua “vocação-para-ser-mais”. Na educação, sobretudo a formal-escolar, residia a possibilidade de nossa “saída”: saída de casa, quer dizer, da proteção privada para começar a experimentar a vida pública, impessoal; saída da nossa cultura particular para experimentar o universalismo da Ciência; saída da facticidade da vida para experimentar a abstração, e saída de nosso egocentrismo para nos relacionarmos com os outros. Sendo que todas estas saídas exigem que exerçamos sobre a condição anterior um olhar crítico, entendendo a “crítica” como aquele exercício de consciência que se situa entre o real (o que é) e o ideal (o que poderia ser). Quanto mais aceitarmos estas “saídas”, mais nos aproximamos de nossa “humanidade”, que não é construção solitária (“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho…”). O universalismo é a realização do que há de potencial em cada um nós e que, se não o realizarmos, permaneceremos aquém de nossa “Humanidade”.
Mas este universalismo parte de um horizonte pré-definido: uma determinada concepção de Homem, uma identidade essencial (liberdade, moralidade, racionalidade, consciência) que através da educação se alcançará! Definida a humanidade do homem, quer dizer, com suas características essenciais e idealizadas (típicas da metafísica), trata-se agora de averiguar onde nos situamos em distância ou aproximação daquele ideal e, dependendo desta distância, precisaremos de mais ou menos educação!
Isto significa que toda política identitária, que nós entendemos como uma conquista e uma afirmação de direitos de grupos historicamente segregados, é também política de exclusão: qualquer um que não se enquadre nas características ou critérios definidores de uma “identidade” está fora dela. Aliás, temos que admitir que toda “identidade” se constrói a partir de um Outro que nos é estranho. Este Outro não precisa existir “objetivamente” em sua outridade irredutível: é o Mesmo (aquele que se reconhece numa identidade pré-definida) que fabrica este Outro (o judeu de Sartre ou o oriental de Saïd) e, sem ele, o Mesmo também não pode existir. O que fazer então com aqueles que não se reconhecem, nem se definem segundo nossos critérios de humanidade? Simplesmente considerá-los como não fazendo parte de nossa “humaine condition”? Há várias respostas para esta pergunta: podemos segregá-los, invisibilizá-los, mandá-los de volta para seus lugares de “origem”, convertê-los, catequizá-los, matá-los. Mas há uma resposta que nunca tratamos com a mesma seriedade com que tratamos a segregação ou a eliminação do Outro: educá-los!
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