Um dos problemas apontados por aqueles que estudam a formação da intelectualidade brasileira (Mota, Leite, Micceli, Pécault), especialmente a partir dos anos 20 do século passado, é o da fragilidade de nosso ideário em dar uma resposta “nacional” aos problemas culturais, econômicos ou sociais. A força que detém o modelo civilizacional europeu entre nós – sobretudo o francês, naquele momento – determina nossa forma de pensar e ver o país, de maneira que nossas elites, no seu “macaqueamento” do estilo de vida europeu, apenas lamentavam o fato de que, com nossa formação colonial, escravista e agrária, dificilmente alcançaríamos os patamares exigidos pela verdadeira civilização.
O célebre professor da Faculdade de Medicina da Bahia, Nina Rodrigues, este “radical do pessimismo”, como o chamou Lilia Schwarcs – fizera toda a sua fortuna intelectual defendendo as teses de um lombrosianismo racialista: “a liberdade é uma ilusão que nenhuma política republicana ou democrática poderá ignorar. Há uma ontologia racial que faz com que os negros “sempre hão de constituir em fator determinante de nossa inferioridade como povo”. Chegou, inclusive, a propor, em seu “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, códigos penais distintos que permitissem estabelecer responsabilidades atenuadas e relativas para os negros, em função de sua condição de degenerescência e incapacidade intelectual em perceber o crime: a punição seria medida e avaliada em função da raça, da idade e dos povos! Quando a cabeça decepada de Antônio Conselheiro lhe foi enviada para análise “frenológica”, sua conclusão foi categórica: tratava-se, segundo a forma e as dimensões cranianas, de um… fanático!
Não preciso lembrar que o projeto civilizacional representado pela cidade de Paris exercia sobre nós, desde o século XIX, um tal poder de sedução que sob a administração de Francisco do Rego Barros (presidente da Província de Pernambuco no início da segunda metade do XIX), que passara anos naquela cidade, trouxe para o Recife uma “missão francesa” (comandada pelo saint-simoniano Louis Vauthier) que instaurou um projeto de clara inspiração haussmaniana na cidade, com a abertura de largas vias e “saneamento” (urbano e moral) da cidade. Esta mesma sensibilidade colonial e inferiorizada se manifestaria em iniciativas posteriores (já no século XX) com Sérgio Loreto, com Rosa e Silva e com Estácio Coimbra (e no Rio de Janeiro com Pereira Passos) – aqui residia a fonte de nossa mais profunda infelicidade cultural: não éramos Paris! E a presença negra em nossa composição nos impedia de realizar efetivamente a obra da civilização. Não é que nosso “povo” não prestasse; o problema é que, a rigor, nós não tínhamos “povo”. Tínhamos um misto infra-humano de incultura e degenerescência.
O importante, aqui, é assinalar que os anos 20 iriam operar uma decisiva inflexão na substância deste projeto de nação. Acho que há algumas razões que, se não explicam, pelo menos oferecem uma primeira aproximação para um quadro interpretativo que doravante colocaria o “povo” na pauta intelectual.
Em primeiro lugar, é necessário levar em séria consideração o fato de que o movimento modernista (amplo e variado demais para caber numa palavra) introduziu entre nós uma outra “função” da arte: que a própria arte tenha uma “função” e que esta vá além do puro prazer estético, do rigor técnico, do voo do espírito ou da distinção social oferecida pelo consumo simbólico, isto já representa uma clara mudança de sensibilidade político-estética, mas também uma inflexão crucial no papel social do artista (e do intelectual em geral) e da arte. Aliás, o caso Dreyfus (1896) sugere, neste sentido, uma mudança importante neste papel: a publicação por Émile Zola do “J´accuse!” colocou o artista (e, de uma maneira geral, o intelectual) moderno num patamar em que ele agora intervém diretamente em questões sociais, políticas e ideológicas, inaugurando, assim, uma concepção de “intelectual” que abandona sua sintaxe puramente adjetiva por uma outra de conotação substantiva (“O intelectual”), caracterizada pelo engajamento em “causas”, e ajudando a sociedade a digerir seus próprios preconceitos.
Observe-se, além do mais, que a atmosfera intelectual e ideológica dos anos 20, por razões diferentes, tornou-se altamente favorável às injunções nacionalistas. Aqui é preciso compreender tais invectivas não apenas sob a ótica da simples valorização dos símbolos nacionais voltados para a construção artificial de um sistema de pertencimento, mas é, sobretudo, interessante anotar que é à montante da ideologia nacionalista, quer dizer, na sua matriz romântica (romantismo, não como estilo de época, mas como sensibilidade antimoderna e antirracionalista), que se situa esta duradoura relação entre povo e nação e, em se tratando do romantismo, entre cultura popular e identidade nacional.
Foto da Capa: Reprodução do quadro Tropical, 1917, de Anita Malfatti.
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