I) A jovem da calçada estreita não se importa com a interrupção que provoca no fluxo de transeuntes. Para ela o mundo não existe. Quer dizer, em partes, pois da sua tela de celular – espelho mágico, serviçal que parece a tudo dizer sim – abre-se um supostamente maravilhoso universo de likes e engajamentos. Curiosamente, a beleza garantida da selfie não disfarça o tom patético da busca pelo melhor ângulo de si. Justamente ali, à céu aberto, em uma performance velha conhecida dos espelhos de banheiros. A vaidade, talvez, seja mesmo a falha com a qual somos mais condescendentes. Até mesmo o governador do RS faz seus posts sobre suas atividades físicas. Quem nunca?
II) Sempre me pareceu didático o mito de Narciso afogando-se em sua própria imagem. Parte de nossa dificuldade de olhar para o lado diz respeito a essa imersão. Não há o que faça eco quando Narciso está por se afogar. Por falar nisso, as metáforas aquáticas que têm incomodado tanto, mostram como, nesse momento, faz-se difícil escapar do monotema. As enchentes agora mobilizam muitos olhares para o lado, através de vidas que vão implorando por diversos níveis de salvamento. É preciso deixar de afogar-se nas águas de um narcisismo envolvente e pensar no que o outro pode estar precisando. E não o que eu penso que ele deveria precisar. Dureza!
III) No entanto, agora as águas turvas do Rio Grande do Sul parecem nos devolver um espelho duvidoso. Quem somos sem a ilusão de nossa imunidade às mudanças climáticas? Quem somos sem a nossa ilusão de superioridade e abundância sulista? Como fazemos para nos reconhecer nas palavras do presidente Lula, atônito com a grande presença negra no estado? Como reconhecer nesse novo espelho gaúcho, como parte do nosso território, aquilo que o governador Leite não consegue, quer dizer, as comunidades indígenas e quilombolas amplamente afetadas pelas cheias? Como reconhecê-las como merecedoras principais do braço estatal, já que a caridade do centro não costuma navegar tão longe?
IV) Por falar em pessoas não-brancas, gosto de escutar a excelente escritora e psicanalista negra Taiasmin Ohnmacht quando ela comenta com mestria sobre o espelho de Oxum. Aquele espelho poucas vezes está enfrentado a face de uma Orixá vaidosa, mas, habilmente, serve como retrovisor que nos orienta de onde viemos, enquanto fazemos a nossa gira. Hoje vejo essa dança como passos firmes à frente e amorosos ao lado, em direção a quem precisa. Outros espelhos alternativos vão se desenhando em mosaico, assim como o comovente texto do psicanalista Edson de Sousa sobre o resgate que o cavalo caramelo faz, de certa forma, de nossa própria humanidade.
Espero que as águas, já cansadas de espelhar nossa miséria, sigam seu caminho.
Foto da capa: Secom RS
Leia mais textos de Priscila Machado de Souza: Leia Aqui.