Diz-se que o poeta cubano José Martí cunhou a expressão “plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro: três coisas que toda pessoa deve fazer durante a vida”. Ela procura dar um sentido existencial ao ser humano por meio de uma contribuição longeva ao habitat, pela criação de uma descendência e por suas memórias.
Entendo que este ditado foi atualizado. A partir de agora, soma-se a eles a máxima “resolver um problema com sua provedora de internet”. Ela une e, ao mesmo tempo, dialeticamente, afirma e nega todas as demais. Escrevemos porque acreditamos que o que pensamos ou vivemos merece ser narrado. A chave de nossa biografia está em mostrar nossa vida como algo impactante. Esse impacto é testado pelos provedores de internet. Se conseguimos resolver nossos problemas com eles, somos vitoriosos. O problema é que eles dispõem de inúmeros estratagemas calculados para lhe testar. Eles são capazes de tornar sua vida irrelevante ou não. Se você fica parado dias sem resolver seus problemas com eles, você se mostra incapaz de deixar uma marca no mundo, porque você é a marca da vitória da empresa. Vitória dela em não gastar para resolver seus problemas.
A internet nas relações familiares
No âmbito familiar atual, dispor de internet é tão importante quanto possuir um berço ou qualquer outro instrumento para a criação dos filhos. A internet transformou-se também no novo brinquedo que oferecemos às crianças, com seus programas de streaming para todas as idades. Isto é errado, e embora o mais importante na criação dos filhos sejam as relações e valores que os pais possam estabelecer, a verdade é que transferimos parcela dessa responsabilidade para outros instrumentos: já foi a televisão, agora é o streaming. Não são apenas os pais que inspiram os filhos, mas também os programas de televisão. E eles dependem de uma boa internet. Pior: quando consumidos de forma saudável, eles criam um senso de comunidade pelos comentários familiares que provocam. Quando não, fim do passeio em família, substituído pela audiência isolada das séries de televisão.
À medida que os objetivos de plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro são testados por uma experiência única, a de tentar resolver um problema com sua operadora, eles são entrelaçados também de maneira única, mostrando seus vínculos com o capitalismo de nossa época, o que a citação de José Marti é incapaz de fazer. É que um problema com a prestadora de internet é um teste existencial que objetiva saber se você é capaz de distinguir ações superficiais das profundas, compreender o propósito intrínseco da vida ou se já se entregou às mazelas da vida cotidiana sob domínio das grandes empresas.
Sim, este é um texto confessional. Eu estou neste exato instante com problemas com minha prestadora de internet. Não digo o nome, pois poderia ser qualquer uma – e evidente, para que não seja este mais um motivo para a empresa não resolver o problema. “- Problemas com provedor de internet? Grande novidade!” Você pensa. Eu só não tenho problemas maiores porque, tendo o mesmo problema no passado, tomei a drástica decisão de possuir duas empresas de fornecimento de internet em casa. Loucura? Com certeza. Abdicação do desejo de revolta contra o capital? No mínimo. Fraqueza de espírito? É claro! Reconhecimento de um vício ou adição? Sim, se este último termo define uma dependência ou perturbação que causa sofrimento psicológico. Mas eu ainda sinto profunda revolta por ter um problema e não conseguir resolvê-lo seguindo passo a passo o que a empresa me manda fazer. Se não fosse isso, meu editor Luis não receberia este ensaio.
Inicia a jornada
Estou escrevendo em um sábado, que completa exatamente doze dias que abri o meu primeiro protocolo junto à minha provedora de internet. Nesse período, foram doze protocolos abertos e quatro visitas técnicas. Poupo o leitor dos números de registro. Só existe uma situação mais perturbadora que a narrada em O Processo, de Kafka: a da relação com uma provedora de internet. Da mesma forma que Josef K., então com 30 anos, é visitado em seu quarto de pensão por dois sujeitos que dizem que ele está preso, eu, com o dobro da idade, sou visitado por técnicos da minha provedora de internet que dizem que o problema dela está na rua, e não na caixa do prédio. E, da mesma forma que Josef K. é obrigado a se apresentar periodicamente a um tribunal, eu sou obrigado a receber técnicos sucessivos em minha casa que dizem que não têm condições de resolver o problema.
A sensação de alheamento é a mesma dos escritos de Kafka. E, de certa forma, você é tratado pelas empresas de telefonia exatamente como é o personagem de A Metamorfose: é como se você fosse uma… barata! Você é esse nada como o caixeiro viajante Gregor Samsa, que se vê reduzido em um dia a uma barata: eu acordo com a mesma sensação por um problema de internet. Kafka escreve seus textos célebres por sua experiência com a burocracia estatal. Eu escrevo este texto por uma experiência com a burocracia privada. Quem já teve a necessidade de contatar sua operadora sabe do que estou falando: horas no telefone aguardando o atendente, números enormes de protocolos para anotar, solicitações não atendidas a perder de vista. No meu caso, tudo porque preciso de um técnico externo. Mas o melhor de minha história está nos detalhes.
Meu primeiro técnico visitou-me numa quinta-feira. Ele fez os testes com o aparelho de minha casa, com a caixa do prédio e com o equipamento do poste de minha rua. Ele disse: “- o senhor está sem internet”. O que eu já sabia, mas ele deu o detalhe infernal: o problema é fora de casa, no ponto de fusão. A telefonia digital tem seus jargões, praticamente ininteligíveis para o cidadão comum. “- O que é, onde está, como se conserta?” Perguntei. Ele não explicou muito, disse que fez uma solicitação para a empresa mandar um técnico externo – sim, ele é técnico interno, também não sabia que havia uma hierarquia entre os técnicos, afinal usam a mesma roupa e não sabia que usavam um grupo de WhatsApp – da minha empresa de internet – para se informar dos casos. Ele disse que iria vir no dia seguinte, o que, evidentemente, não aconteceu. E eu lá vou iniciar o meu périplo de ligações para a empresa, especificando claramente que é necessário um técnico externo.
Entrando no looping
Na semana seguinte, recebo a visita do segundo técnico. Os técnicos da telefonia chamam de procedimento padrão o que os médicos chamam de anamnese (inspecionar, apalpar, percutir e auscultar), e o que os antropólogos simplesmente chamam de rituais. Os técnicos da minha empresa de internet têm seus rituais e é impossível ultrapassar ou acelerar qualquer uma das suas etapas. Essa espécie de liturgia dos procedimentos é o que torna insuportável o relacionamento com tais empresas. Nelas, não há rito de passagem, termo utilizado pelo antropólogo Arnold Van Gennep. Não há como fazer uma passagem de uma etapa a outra: uma vez feita a ligação solicitando o procedimento, a empresa não avança, não aprende, simplesmente como num looping, volta ao estágio inicial. O segundo técnico diz o mesmo que o primeiro, após fazer os mesmos testes daquele. Nova ligação para a empresa solicitando novo técnico. O novo técnico faz os mesmos registros, os mesmos rituais, mesmo tendo sido a empresa alertada, pela segunda vez, de que é necessário um técnico externo. O terceiro técnico idem. Impossível fazer o rito de passagem do problema.
O quarto técnico foi uma novidade. Ele chegou às 15 h, e segundo o próprio se intitulou, ele é um “técnico externo meia boca”. Isso só pode acontecer no Brasil. Ele confirmou que o problema é externo. Até aí, eu já sabia. Ele é “meia boca” porque, apesar de ser um técnico externo, ele não dispõe do equipamento que os técnicos externos precisam para fazer o serviço, pois é um problema de “fusão”. O que eu já sabia e foi repetido pelos outros dois técnicos.
O técnico foi muito atencioso. Ele realmente sabia o serviço. Ele explicou que há dois processos externos, um é o de fusão. E o outro, não me recordo do nome. A empresa está aos poucos passando os equipamentos de fusão, que exigem recursos mais caros, para o segundo, mais barato e simples. É típico. A empresa terceirizada dele tem poucos equipamentos de fusão, daí ser priorizado os prédios maiores, não os casos isolados, como o meu. Então, quando chega um caso, no sistema deles, não é considerado “evento”, pois um caso só não contaria, é entendido como problema da caixa, e a equipe certa com os equipamentos certos não é priorizada. Para a assistência da minha empresa de internet, eu estou morto. Entendeu?
Ele foi atencioso, fotografou os equipamentos e mandou para seus superiores. Ele disse que esse tipo de problema é comum e já havia sido relatado em reunião, mas pouca coisa foi feita pelos chefões. Que ele mesmo havia alertado que eram necessários mais equipamentos e que os superiores saberiam do problema. Ele disse que mandou “mastigado” o problema no WhatsApp da equipe, mas não me deu nenhum prazo de solução. Eu já havia recebido um telefonema da minha empresa de internet me informando que o meu problema estava em um outro patamar: a Ouvidoria. Ela tinha sido responsável pelo envio deste último técnico, o “externo meia boca” .
A ironia do destino
Não é notável? Vem o técnico certo com os equipamentos errados. Ou sem. É sempre assim que são tratados os empregados terceirizados destas empresas. Na base, há muitos servidores sobrecarregados, estressados, mas há outros muito bons. Meu “técnico que se diz meia boca” na verdade foi o melhor dos quatro, com certeza é um ótimo trabalhador. Ele foi claro, atencioso e explicativo, bem diferente do primeiro que prometeu que um técnico externo viria no dia seguinte e não veio, do segundo que não mostrou interesse, do terceiro surpreso por ter de ouvir minhas reclamações quando dois outros já o fizeram e do quarto, este último o melhor e com condições de fazer o serviço com competência técnica, mas que não tinha condições materiais.
Não é sempre assim no capitalismo de mercado atravessado por relações perversas de poder? Colocam os competentes no andar de baixo sem condições, enquanto os incompetentes, no andar de cima, só sabem buscar aumentar os lucros da empresa e os dividendos dos acionistas, pois serviço que é bom, eles estão longe e distantes. Estou na minha empresa de internet desde a sua criação. É uma vergonha. Quanto mais falam de qualidade, mais o serviço piora. Espero que não demitam o técnico por causa do meu relato, seria uma perda para a minha empresa de internet, que deveria promovê-lo por bom relacionamento com o público. De minha parte, parti para a briga, com as armas disponíveis nesse mundo: registros no site Reclame Aqui, consumidor.br e Anatel, que deu dez dias para a empresa fazer algo. Claro, sem antes perder horas provando com imagens que você está vivo, cadastrando-se, descrevendo e preenchendo fichas enumeráveis etc. Descobri que a sede da minha empresa de internet fica na Av. Independência: depois de quatro visitas, e mesmo com direito à música no Fantástico, e nada resolvido, estou ficando sem esperanças e pensando em fazer uma visita. É demais.
Por que tanta indiferença? Há um debate interessante sobre a natureza do capitalismo que ajuda a compreender isso. É o debate sobre o tecnofeudalismo, conceito que descreve um sistema socioeconômico emergente caracterizado pela concentração de grande poder e controle nas empresas de tecnologia. Ele foi amplamente divulgado pelo escritor Yanis Varoufakis em seu Technofeudalism: what killed capitalism (há uma tradução a ser lançada no próximo mês), mas cujo termo foi de fato cunhado por Cédric Durand em seu Tecnofeudalismo: crítica da tecnologia digital. A ideia, é claro, já recebeu inúmeras críticas, como prova a edição mais recente da revista Variations, mas ainda ela pode ter alguma utilidade.
O tecnofeudalismo está na dependência
No tecnofeudalismo, o que temos é uma estrutura semelhante ao feudalismo medieval. A primeira característica é a relação que estabelece de dependência. Você não tem outra forma de solicitar o serviço se não para a empresa de telefonia de que você é dependente, pelos meios e formas que ela estipulou. Da mesma forma na aviação: você está totalmente dependente da vontade da companhia aérea: se decidirem que você deve mudar de lugar, você deve aceitar. No caso dos provedores de internet, nem pensar em migração, que pode durar também dias. Os autores apontam que as plataformas digitais, as Big Techs, são as protagonistas do tecnofeudalismo, mas isso ainda fica no campo do comércio eletrônico e da prestação de serviços na nuvem. Minha hipótese é que o termo pode ser também aplicado às mais diversas empresas, das empresas de aviação às fornecedoras do próprio serviço de internet: não apenas o Google e a Amazon seriam empresas tecnofeudais, mas também as empresas aéreas e as provedoras de banda larga. Minha empresa é de internet, entendo que é tecnofeudal e que outras também estão em seu campo de definição.
Eu estou incluindo as empresas aéreas por causa da Ingrid Guimarães. O caso dela não foi um outro exemplo de tecnofeudalismo? A atriz foi constrangida a ceder seu assento da classe premium economy para um passageiro da classe executiva. Quer dizer, ela foi tratada exatamente como um servo medieval, aquele que não tem direito algum, dependente do desejo da companhia aérea como se fosse dependente do senhor feudal e de sua força incontrolável. É essa relação de dependência e exigência de submissão que vejo como importante no conceito de tecnofeudalismo.
A relação de dependência não é somente com os clientes, é também com as empresas terceirizadas que prestam serviços, que dependem de insumos para realizar seu serviço. Entendo que é, de fato, um conjunto de atores que está numa relação semelhante à servidão feudal. Os autores afirmam que, associado a isso, encontra-se o cercamento digital, que limita a liberdade dos usuários e restringe a concorrência. Eu vejo o cercamento digital no momento exato em que ligo para o telefone da operadora. Qualquer um sabe do que estou falando: as alternativas estão ali, limitadas, você precisa ouvi-las. Pegar um caminho numa alternativa é o equivalente do labirinto da Praça das Flores, no centro da cidade de Nova Petrópolis, onde cada alternativa selecionada é como o caminho dos círculos de ciprestes rodeados por flores, mas, ao contrário de garantir diversão para todas as idades, apenas promove mais estresse no consumidor.
Extração de dados
O pior é a própria apropriação de dados que fazem e que já se tornou comum em inúmeras outras empresas acessadas por meio digital. Você é obrigado a responder no final de cada atendimento, a chamada ‘pesquisa de satisfação’ – uma bobagem, eles sabem que você ainda está insatisfeito. Mas você sente que precisa sinalizar positivamente porque teme piorar sua situação. Tem maior chantagem de dados do que esta? Quer dizer, você está oferecendo dados sem ter seu problema resolvido, o que a empresa usa para gerar mais receita.
Você vê sinais claros de precarização do trabalho, outra característica do tecno feudalismo nas desculpas de atendentes que sabem que pouco podem fazer pelo seu caso, pelas desculpas dos técnicos que o visitam, mas principalmente pela constatação simples da lógica que rege os atendimentos que a plataforma e suas equipes terceirizadas promovem: não há apenas ausência de proteção ao cliente, há ausência de proteção social aos seus trabalhadores. O estresse do lado de cá do consumo encontra seu equivalente no estresse do lado de lá do trabalhador.
É a nova implicação social do tecnofeudalismo: a desigualdade social no acesso aos bens tecnológicos. Enquanto a minha empresa de internet concentra capital e riqueza, já que meu pagamento está em dia, sou vítima da desigualdade tecnológica: há clientes com internet e outros sem. É a própria corrosão da democracia, já que o controle de quem pode acessar a comunicação e informação é vital para a liberdade de expressão e a democracia.
Como reagir?
É preciso mais regulamentação sobre as empresas de telefonia. A regulação existente não é suficiente para a correta prestação de serviços e proteção do usuário. É preciso o desenvolvimento de alternativas descentralizadas de oferta de telefonia, como havia, em certo período, da própria TV Pública. O usuário precisa ter mais controle e autonomia.
Por que o acesso é vital e a dependência é uma droga? Você já deve ter visto pessoas que não se desgrudam de seus aparelhos celulares, alimentando-se duplamente, de alimentos físicos, mas também das informações da rede social, num movimento obsessivo-compulsivo, o que me evoca a palavra cracknet, que, evidente, querido leitor, não existe. Não tenho dúvidas de que a dependência da internet é a verdadeira epidemia de nosso tempo. Sequer se trata apenas da juventude, a chamada “geração internet”, dos milhares de jovens cujos hábitus (Bourdieu) envolviam o fato de não se desgrudarem da tela do computador e cujas consequências iniciavam na família com o distanciamento das relações com os pais. Quem não se lembra das piadas em que o pai tinha de passar um e-mail para chamar a atenção do filho ou do ambiente escolar, onde jovens reconheciam que nunca tinham lido um livro sequer, mas abusavam do uso de sites de resumos de livros para realizar os trabalhos de aula?
Estamos vendo a primeira geração de adultos completamente dependentes da internet – eu, inclusive, ainda que tenha a memória do tempo em que ela não existia – em seus locais de trabalho, em sua casa e na rua, através de seus smartphones. Diz uma moça, a certa altura, nas redes sociais: “É viciante”. Assim, o vício em internet, ou aqui cracknet – vamos pensar por um instante que este conceito seja possível – torna-se assim tão perigoso quanto o vício em crack real, objeto de tantas campanhas. O cracknet domina de forma tão intensa o cérebro que se torna impossível deixar de ler e-mails ou acessar sua conta; e é essa sensação imensa de euforia que a conexão com a internet possibilita que a torna perigosa: quando você se afasta dela, você fica com a urgência de retornar a ela? Sinto, então você já é um viciado. Internet vicia como crack? De certa forma, sim, mas não do ponto de vista da produção de alucinações, simplesmente porque ela própria já é a alucinação em si. E o fato de que o usuário de internet não sentir prazer por outros aspectos da vida reforça o fato de se transformar em vício. Como assinala o filósofo esloveno Slavoj Zizek, trata-se de mais um elemento naquilo que ele denomina de “lógica inexorável do capital”, a construção da prisão que governa a vida. Longe de ser somente o abismo de liberdade que promete a internet, ela também é o abismo da desintegração do outro e de si mesmo. Ficar sem internet, portanto, é a nova forma de tortura. A experiência de sua falta provoca síndromes de abstinência.
Ricos demais para se omitir
Deveríamos ser capazes de resistir a esse sistema, mas agora, só resta entrar em juízo para ter acesso à internet, como entramos em juízo para acessar medicamentos que o Estado se recusa a fornecer. É a judicialização dos serviços de operadoras, que deveria existir como a judicialização dos planos de saúde. Minha operadora não é uma empresa pequena. Oriunda da fusão da Telefônica Móveis e Portugal Telecom, suas ações tiveram início em 1992 e 1993. Em 1996, adquiriu a antiga Companhia Riograndense de Telecomunicações, (CRT), do Rio Grande do Sul. A marca da minha empresa de internet surgiu em 2003, e em 2009, a própria Anatel a considerou a melhor companhia de atendimento. Acusada de formar cartel em 2013, juntamente com Oi, Claro e Tim, é hoje criticada por diversos processos, já tendo sido obrigada a pagar indenizações por má-fé e propaganda enganosa. Desde 2015, já enfrenta ações públicas pela má qualidade do serviço.
Em entrevista ao jornalista Ralph Mazoni, do site neofeed, Christian Gerbara, então CEO da minha empresa de internet, mostra o tamanho do império feudal. Avaliada em 70 bilhões de reais, a empresa conta com 112 mil clientes em diversas linhas de negócio que vão de serviços móveis, fixos, fibra, TV por assinatura e uma receita líquida de 48 bilhões em 2022. A dependência continua com serviços que nem sabia que existiam. Você sabia que a minha empresa de internet atua no mercado financeiro, com uma carteira de 223 milhões em empréstimos que gerou uma receita de 94 milhões em 2023? Você sabia que ela já fez mais de 300 mil seguros de smartphones na parceria com a Zurich Seguros? Que já comprou a Vale Saúde Sempre, em 2023, num negócio de 69 milhões de reais? Ela mesmo vende serviços de streaming, de empresas como a Disney, faturando 103 milhões de reais somente no primeiro semestre de 2023. “Nosso objetivo é crescer em todos estes serviços, e pouco a pouco vamos abrir nossos dados ao mercado”, diz o CEO na entrevista.
Quando o seu CEO fala que tudo isso é feito graças a seus “mais de 100 milhões de clientes”, me vem à mente a nítida imagem do feudo de que o tecnofeudalismo fala. E a imagem presente no filme Matrix, a das fazendas de corpos humanos que são usadas como fonte de energia. Pois não se trata, como um aspecto do debate do filme diz, de que os corpos humanos geram pouca energia, o fato é que a minha empresa de internet, como no filme, e este é o ponto crucial, como as máquinas, não está colhendo humanos para obter energia ou gerar negócios, está nos colhendo como assinantes, colhendo nossas informações para gerar dados e promover a dissuasão a nível de mercado. Somos a fazenda humana do filme Matrix para uso das provedoras de internet, atualização da fazenda feudal, nós somos feitos dependentes não porque sejamos baterias, o que é outra representação metafórica do filme, mas porque somos explorados pela empresa de telefonia da mesma forma, auxiliando a formar um grande conglomerado a partir de nossa quantidade. Não se trata de, na Matriz, simular uma realidade virtual habitada por humanos e máquinas, mas de, na nossa matriz real, sermos parte de uma máquina de criação de lucros infinitos de mercado que se expandem.
O desejo de poder do capital
Quando o CEO afirma que “quero mostrar ao mercado que somos muito mais do que uma empresa de telecomunicações”, sem querer, é o ideal feudal que se manifesta. As “telcos”, termo que usa para tratar as empresas de comunicações como alguém da “família”, “elas não são um mundo fechado que não têm relação com ninguém”, afirma Eduardo Tude, presidente da Teleco, outra empresa de telecomunicações citada na entrevista. Como o império de Carlos Magno, que realizou inúmeras conquistas territoriais no feudalismo europeu, minha provedora de internet no tecnofeudalismo de que faz parte realiza inúmeras conquistas de territórios econômicos. Ainda que Gerbara já tenha sido substituído como CEO por Marc Mutra, nada indica que o modelo tecnofeudal tenha se alterado.
Eugene Morozov, em sua Crítica da razão tecno-feudal, diz que, se a hipótese do tecnocapitalismo estiver certa e o capitalismo estiver desaparecendo, só pode ser para o aparecimento de algo pior. E aí, não seria o ditado famoso de Zizek, mas o de Jamerson que teria lugar: “Hoje, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que a continuação do capitalismo como o conhecemos.” E continua: “À esquerda, cresce a lista dos que flertaram com os conceitos ‘feudalistas’, já longa: Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Jodi Dean, Robert Kuttner, Wolfgang Streeck, Michael Hudson e, ironicamente, até Robert Brenner, o do debate homônimo sobre a transição do feudalismo para o capitalismo.” De minha parte, sou destes esquerdistas que verifica até onde se pode ir com a ferramenta teórica. Minha conclusão é de que algumas características medievais podem ser encontradas no capitalismo atual e isso pode esclarecer o retrocesso histórico do qual fazemos parte – sendo a pobreza apenas uma delas. Mas o fato é que é irresistível chamar minha provedora de internet de tecnofeudal, como chamamos Trump ou Bolsonaro de fascistas. Fazemos isso porque o único objetivo disso é acordar a sociedade. Morozov dá os contornos exatos do debate, então deixo ao leitor o prazer da leitura. Mas a ideia do parasitismo presente nas relações entre a empresa e seus consumidores, entre aqueles que dependem do serviço e pagam por ele e a empresa que não é capaz de os fornecer, e mesmo assim, garante que os irá, que vive da crença em suas promessas, como os incessantes registros de providências provam, só reforça a ideia de que a extração da mais-valia dessas empresas encontra outras formas de se realizar. Não é porque se trata de uma economia digital, que estamos livres das amarras do passado.
A meta é o lucro, não o serviço
Morozov fala da obra anterior de Durand, Capital Fictício, onde o autor havia examinado a relação entre lucros e investimentos: ”quando o capitalismo funciona bem, altos lucros levam a altos investimentos. No entanto, a partir de meados da década de 1990, esse vínculo não existe mais: os lucros aumentaram nas economias capitalistas avançadas – embora com flutuações – mas o investimento estagnou ou diminuiu. Muitas explicações para isso foram apresentadas, incluindo a maximização do valor para o acionista, o aumento da monopolização e os efeitos tóxicos da financeirização acelerada.“ Não seriam estas as características que estariam atingindo também a minha empresa de internet, que encontrou uma maneira de ganhar mais dinheiro sem investimento adicional? Enquanto a globalização e a digitalização permitem que a empresa, como o Walmart, explore sua posição e imponha preços, a minha empresa de internet vai além, não é apenas a “ascensão da tecnologia digital”, que “alimenta uma enorme economia rentista [porque] o controle da informação e do conhecimento, ou seja, a monopolização intelectual, tornou-se o meio mais poderoso de capturar valor”. Não, entendo que agora é o próprio fornecimento da infraestrutura desse sistema que é fonte de valor.
Eu continuo esperando que a Ouvidora encarregada apenas de meu caso resolva meus problemas, mas eles de fato estão incluídos na lógica econômica perversa da empresa para quem sou apenas o dano colateral (Baumann): agora, assim como a morte de civis não interessa aos países envolvidos em guerra, da mesma forma a morte do sinal fornecido para um único cliente de um prédio não tem significado para o sistema. Sim, são coisas completamente diferentes, mas minha perda de sinal compartilha de alguma forma, como a das vidas perdidas daqueles conflitos, a naturalização, a indiferença dos governantes, que é a mesma dos grandes CEOs destas corporações.
A conclusão é que os danos colaterais nada mais são do que a forma da indiferença destas empresas com relação a seus consumidores, exatamente como era do senhor feudal em relação a seus súditos. E, portanto, qualificar tais empresas como integrantes do tecnofeudalismo é outra forma de mostrar que elas avançaram mais uma etapa da corrosão da ética das grandes corporações, tendência de seus administradores lavarem as mãos das perdas isoladas de seus clientes como um mal necessário para o bom funcionamento de todo o sistema que visa o lucro.
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Foto da Capa: Gerada por IA.