A TV está ligada. O programa Altas Horas é dedicado às crianças. O apresentador Serginho Groisman abre espaço para que elas falem.
E começa um revezamento de meninas e meninos completamente desinibidos e verdadeiramente (ingenuamente?) sinceros. Todos a nos convocar ao combate. Ao bom combate.
Já na primeira fala, gostei. Com essa geração que vem aí, mesmo exposta a todos os riscos dessa superconexão, onde proliferam mentiras, fake news, irresponsabilidades, egoísmos vários e tristes e miúdas defesas de interesses privados, o planeta e a humanidade estarão em boas mãos.
Não ouço, nestas altas horas, nenhuma frase vazia.
Cada criança, ali, tem um recado para os adultos. Estão, naquelas falas curtinhas, todos os assuntos que ocupam espaço no cotidiano mundial: as guerras, o preconceito, a falta de segurança, a desigualdade que mata, o machismo que oprime e fere e a urgente necessidade de cuidarmos da natureza.
A gurizadinha convoca para batalhas urgentes e que, ao contrário das guerras dos adultos, não deixam vítimas, não destroem, não ferem. E fazem a verdade prevalecer, em vez de fraquejar…A munição deles é o conhecimento, a boa informação, a sensatez. Os inimigos são a fome, a falta de escolas, a violência, o preconceito.
Uma menina pede mais respeito pelas mulheres. Outra, condena o racismo. E outra, ainda, lembra que, enquanto alguns podem ir a restaurantes todos os dias, muitos não tem nem o que comer. Várias crianças reclamam respeito com a natureza, pedem mais carros elétricos e fábricas menos poluidoras. O menino pede o fim da violência nas cidades. Muitas falas homenageiam os professores.
Na “guerra” dessa nova geração, a verdade é a primeira vitoriosa.
Esse aforismo que aponta a verdade como a primeira vítima da guerra tem autoria controversa. Há quem o atribua a Ésquilo, o dramaturgo grego que teria nascido no ano 525 antes de Cristo. Mas a autoria do ditado não importa muito. O que vale, aqui, é a atualidade dessa afirmação que, mesmo com o passar dos séculos, ninguém ousou contestar e muita gente atua para confirmar.
Tomemos outra afirmação que virou ditado: a História é contada pelos vencedores. Esta, mais moderna, é atribuída a George Orwell (foto da capa), pseudônimo de Eric Arthur Blair, jornalista e escritor inglês, crítico do totalitarismo em todas as suas cores.
Pois as crianças estão a revogar as duas máximas. E a criar dois novos ditados: a história será contada pelos sensatos e a verdade, na guerra, é que não há vencedor. O ganhador da batalha militar, como o vencedor contador da história, não conseguirá – por mais que repita a sua particular verdade – convencer as futuras gerações de que, ne verdade, precisava matar inocentes…
Imaginemos que as crianças sejam convidadas a perguntar o que quiserem aos senhores das guerras, tanto as que se travam à força de balas e mísseis, quanto às que são disputadas no campo de batalha das redes sociais, onde as mentiras (que cada lado afirma ser verdade) também têm poder destrutivo de canhões, drones e metralhadoras.
Quem será declarado vencedor? Aquele que disparar mais tiros e detonar mais mísseis sobre prédios residenciais? Aquele que matar mais gente (muitas crianças) para ocupar mais um pedacinho do território inimigo? Quem é mocinho e quem é bandido? A Rússia que invade a Ucrânia? Ou a Ucrânia que responde? Os maus são os guerrilheiros do Hamas, que se arvoram defensores da população oprimida em Gaza e, em nome dela, matam, ou as forças de Israel que vão à luta em nome da defesa do Estado e avisam “saiam daí que lá vai míssil”?
Eu fico, com licença do eterno Gonzaguinha, com a pureza da resposta das crianças: viver e não ter a vergonha de ser feliz… ai, meu Deus, eu sei que a vida devia ser bem melhor e será!