Vejo o menino à distância. Ele se aproxima lentamente por um caminho entre os escombros. Num espaço onde antes havia uma rua e prédios, agora reduzidos a caliça e pó. Carrega algo nas costas.
Quando chega bem perto percebo que é o corpo de uma outra criança, ainda menor do que ele.
Sou um dos que cuida da imensa pira onde queimamos os corpos, muitos já calcinados. Estou há tanto tempo aqui, já vi tanto e preciso fazer meu trabalho. Na verdade, essa não seria uma tarefa minha, mas assim como em Hiroshima, aqui em Nagasaki todos os que conseguiram sobreviver precisam ajudar a recompor o que parece não ter mais jeito. Nem sentido.
A “Fat Man”, a segunda bomba atômica, foi lançada na manhã de 9 de agosto de 1945, três dias depois que a de Hiroshima, “Little Boy”. Dá para imaginar a candura e o espírito lúdico com que foram escolhidos esses apelidos.
No decorrer dos primeiros meses após os ataques, os efeitos imediatos das explosões mataram entre 90 e 166 mil pessoas em Hiroshima e 60 e 80 mil em Nagasaki. Pelo menos metade dessas mortes, em cada uma das cidades, aconteceu nos dias do bombardeio. Nos meses seguintes, as mortes se deram pelo efeito das queimaduras, efeito radioativo e outras lesões, agravadas também pela radiação.
Números assustam. Em todas as tragédias, contam-se as vítimas. Às vezes, só às vezes, projetam-se consequências. Doenças, perdas econômicas. Raramente alguém faz alusão aos danos intangíveis, imensuráveis e que serão sentidos, em geral, tardiamente. Na individualidade solitária do sofrimento. Ansiedade, depressão, desvalia, desgosto por existir.
Quando, perto ou longe, vemos cenas de grandes tragédias – como essa tão nossa da enchente no Rio Grande do Sul – percebemos a importância do gesto solidário. Brumadinho, Gaza, Ucrânia e tantos outros lugares e conflitos, massacres, desmandos e erros como os que fizeram que perdêssemos muito mais vidas na pandemia. A solidariedade, no entanto, não pode se satisfazer em si. Ela precisa manter a lucidez da indignação, sem o que jamais poderá se tentar evitar novas e graves situações, muitas vezes repetições de mesma causa e efeito.
Digo ao menino que descanse, que pode colocar no chão o fardo pesado que carrega. Ele apenas me olha e diz: Não é fardo, é meu irmão!
O sol, ainda tímido, espreita entre nuvens. Na velha eletrola, rescaldo da inundação, o vinil roda a balada “He Ain’t Heavy, He’s My Brother, escrita por Bobby Scott e Bob Russel, sucesso da banda britânica The Hollies: The road is long / With a many winding turn / That leads us to who knows here… Em silêncio, traduzo-a mentalmente: a estrada é longa, com muitas curvas, que nos conduzem a quem sabe onde… Mas eu sou forte, forte o bastante para carregá-lo. Ele não pesa, ele é meu irmão.
Ao Caio Dussarrat Riter, na forma de um abraço.
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Foto da Capa: O menino de Nagasaki, de Joe O’Donnel.
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