Qual é o limite entre persistência e insanidade? Até que ponto uma pessoa pode ser admirada por sua perseverança a qualquer custo ou percebida como alguém incapaz de aceitar os nãos e os limites que a vida impõe?
Essas foram as primeiras questões a me atravessarem quando assisti ao filme Nyad, sobre a historia verídica de Diana Nyad, que realizou o grande feito de, aos 64 anos, cruzar a nado de Cuba até Key West na Florida. À parte do grande feito de Diana e da história que mostra todas as questões psicológicas ao redor do envolvimento dela com o nado e o quanto desde pequena essa “vocação” que ela exalta tanto ao longo do filme (usando inclusive a origem grega do seu nome nessa justificativa) na verdade foi uma vocação construída, produzida não só pelas expectativas paternas como também por situações traumáticas vivenciadas em sua infância em relação ao nado e que não vou expor aqui para não dar spoilers.
Nyad é uma mulher durona, que exalta várias vezes não poder tolerar a mediocridade do homem comum que se contenta com feitos banais. À primeira vista poderíamos pensar que essa mentalidade certamente lhe fez ser a pessoa que se tornou. Mas olhando mais atentamente e acredito que o filme vai mostrando isso de uma forma sutil – talvez até sutil demais, para o meu ponto de vista – essa intolerância de Diana com o banal, com o ordinário, mas especialmente, com o não, vai fazendo com que ela se torne uma pessoa cada vez mais difícil de se conviver. A necessidade de conseguir executar um feito que ela, trinta anos antes, havia fracassado, vai fazendo com que ela não consiga enxergar ou escutar as pessoas à sua volta e que se dispõem à ajuda-la. Ela não consegue enxergar o outro e nem mesmo a si própria e seus limites. Por várias vezes, numa em especial, sua vida é posta em risco em função dessa busca.
O filme vai mostrando as tentativas dessa mulher que certamente é forte e determinada e que deixou sua marca na historia. Mas para mim, ele foi uma aula sobre um tema que já falei aqui em minha coluna anteriormente, que é a castração. Termo psicanalítico que resumidamente se trata de limite, de se encontrar com os próprios limites, com a frustração de se entender insuficiente. Esse é o tênue limite do qual eu falo no início do texto: talvez muitas pessoas diriam que o problema de muita gente é justamente o de desistir rápido demais, de enfatizar muito mais as próprias limitações do que as potências. Por isso personalidades como a de Nyad podem ser invejadas e admiradas, mas por pouco Nyad não perdeu tudo. A própria vida e suas já limitadíssimas relações de vínculo. O ponto de virada do filme, e que eu enquanto assistia me fez suspirar aliviada, foi a cena em que a treinadora e melhor (e única) amiga de Nyad diz NÃO a ela, para mais uma tentativa de travessia depois de uma tentativa grave. Foi devido a esse não e essa fratura mínima na carcaça defensiva de Diana que ela foi capaz minimamente de enxergar sua conduta para com as várias pessoas que estavam a ajudando em cada uma dessas tentativas.
Talvez eu force a barra comparando essa história e essas tentativas de travessia de Diana com uma travessia analítica. Talvez se ela buscasse uma analise aos 60, quando decidiu tentar de novo realizar a travessia, depois de 30 anos, ela não teria corrido tantos riscos e poderia ter uma vida melhor. Claro que também não teria realizado a façanha que realizou. Mas eu humildemente diria que sobreviver emocionalmente estável, entender de si próprio, ter boas relações com os outros e consigo, saber ouvir um não, pode ser uma façanha e tanto. Os mares são bravios, criaturas selvagens e mortais estão à espreita, mas a travessia pede para ser feita. Viver não é cruzar continentes, viver é estar em estado de nado constante. É possível boiar de vez em quando, ver as estrelas, mergulhar.
Que tenhamos sonhos e persistência sim, até teimosia em certos momentos porque eles podem nos levar além, mas saber quando parar, perceber que desistir nem sempre é fracassar, pode ser uma boa onda. O filme vale muito a pena, Diana Nyad é uma mulher inspiradora, mas não porque cruzou os continentes e não desistiu do seu sonho, mas por entender que nenhum feito é solitário.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube