Os gregos, com Platão, qualificaram o amor em Philia, Eros e Ágape. Philia, o amor afeição, de carinho, afinidade, o amor da amizade. Eros, o amor paixão, de natureza sexual, atração física, o amor do prazer. Ágape, o amor incondicional, de entrega genuína, pura, o amor do ilimitado.
Ágape ganhou leitura em diversas culturas e o cristianismo o ligou à ideia do amor divino. A Bíblia, no Novo Testamento, aponta que esse amor se origina em Deus e Ele o comunica àqueles que são Seus, que o refletem em suas vidas, de modo que esse amor acaba retornando a Ele. Ágape, a origem, o amor que habitamos, o amor que somos. Não é um sentimento, uma emoção, é o Todo. Assim como somos parte do universo, somos uma fração do amor compondo o amor cósmico, divino. Amamos numa interdependência de tudo o que é vivo e animado ou mesmo inanimado. Paradoxalmente, é o amor mais sólido e o mais impalpável. Por isso, nos expressamos quase sempre por Eros e também Philia, que são palpáveis. Mas talvez seja só em Ágape que nos realizemos verdadeiramente humanos.
Recentemente, revi Hiroshima mon amour (1959) em um ciclo de cinema, “Duras, a roteirista”, na cinemateca Capitólio, em Porto Alegre. O filme de Alain Resnais se passa em uma Hiroshima 14 anos depois da bomba atômica, onde está sendo rodado um filme sobre a paz. As cenas se mesclam como um documentário sobre a bomba dentro da ficção do encontro amoroso entre a atriz francesa e o arquiteto japonês. Os dorsos nus entrelaçados dos amantes, vividos por Emmanuelle Riva e Eiji Hokada, simulam incialmente a textura dos queimados, as cinzas sobre os corpos. As imagens avançam com inúmeros registros do horror e o diálogo explicita a impossibilidade de se descrever Hiroshima. Você não viu nada em Hiroshima. Nada. Ela, depois, passa a contar a sua história particular de horror vivida no amor com o soldado alemão em Nevers. Ele é assassinado e ela tem sua cabeça raspada (punição que vitimou milhares de mulheres como colaboradoras do inimigo) e é trancada no porão da casa pelos pais. A narrativa dela vai num crescendo emotivo, catártico, que arrebata ele também na força do amor, no presente, no passado e no futuro. Ao final, os amantes nomeiam o amor: ele, Hiroshima e ela, Nevers.
O filme é um hino à Ágape, a única forma de se haver com a dor, da bomba – Hiroshima se torna a cidade símbolo da paz mundial –, da guerra. Décadas e décadas se passaram e o cinema continua a nos despertar para Ágape. Em Nada de novo no front (foto da capa), vencedor do Oscar 2023, um soldado alemão passa uma noite com uma garota francesa e ela lhe dá uma pequena echarpe bordada de presente. A delicada peça se torna o seu alento e uma espécie de estandarte – o amor jamais reconhece fronteiras – passando de mão em mão, de pescoço em pescoço dos soldados até o final do filme.
Quando o horror se abate sobre nós, é só através de Ágape que podemos seguir nos sentindo humanos. Mas como Ágape é impalpável, realizamos o amor especialmente em Eros, com sua força descomunal, pois impulsionada pelo corpo, essa catedral dos sentidos onde carne e alma comungam. E se no cotidiano também jogamo-nos com igual força em Eros, talvez seja porque nos doa profundamente essa dor que sequer sabemos ser dor, a dor da falta de sentido, do vazio. Essa dor nos joga uns nos braços dos outros com o furor e a imensa beleza de Eros. O amor erótico é também coragem. E arrebata. É uma força tão poderosa que nos transforma, inclusive, ao nível da matéria: ficamos fisicamente mais bonitos, radiantes.
Talvez sejam nossos átomos que se alinham, tal como os átomos de carvão, rocha frágil e comum, resultam no diamante, o material mais duro na natureza, que só pode ser riscado por outro diamante – assim acontece também entre os amantes. Quando submetido a pressões muito altas durante milhões de anos, os átomos desalinhados do carvão se tornam simétricos: os diamantes. Na pressão descomunal da existência humana, Eros nos transforma em diamantes, do grego adamantos, que significa indomável, invencível. O “duro” frente aos equívocos tão avassaladores que vivemos, é justo o Amor.
Talvez estejamos chegando, enfim, ao ponto de realizar o amor não quase que exclusivamente em Eros. No mundo das sensações tudo acaba, especialmente quando o outro nos é arrancado e nos sentimos quase impossibilitados de nos mover na sua ausência. No limite, o luto. A dor que finca e exige, dia a dia, ser percorrida no seu caminho pontuado de curvas fechadas e precipícios, com uma paciência que beira a resignação e um amor ainda maior. Em Ágape superamos as incertezas e a inevitável finitude, realizamos o amor como um Todo, no seu círculo que abarca Eros e Philia, compondo o amor cósmico, eterno, sublime.
Para Divino Fonseca (1942 – 2022)