Márcia não era de falar. Fazia cobranças só em questões pontuais. Uma toalha molhada sobre a cama, a luz deixada acesa a noite toda na sacada, a pasta de dentes que não foi devidamente fechada com a tampinha…
Mas estava incomodada. Há dias, percebera que o marido estava diferente. Normalmente era alegre, às vezes até demais. Já acordava animado. Ainda na cama, contava o que sonhou.
Agora chegava do trabalho e ia direto para o banheiro. Direto porque ela não considerava o beijo protocolar como verdadeiro. Onde está o exagero, que ela sabia ser natural? “Não via a hora de sair do trabalho, já que estava morrendo de saudades de ti!” Nenhum beliscão nas nádegas. Nem mesmo chegava contando tudo sobre seu time do coração, como se para ela fosse o assunto mais importante do mundo.
Após o banho, ele mais uma vez seguiu direto para o quarto. Depois, na hora do jantar, mal abriu a boca.
Algo estava acontecendo. Não, não podia ser doença. Ela o tinha acompanhado em cada uma das muitas consultas e exames. Os resultados tinham sido excelentes, surpreendentes até para um homem de 60, que teve um Covid muito agressivo.
– Sinto-me como um gurizinho de 59 anos e meio – brincou ao abrir na padaria os envelopes com os resultados do último exame.
Até mesmo sair para ir aos médicos era motivo para um programa. Qualquer lugar era romântico. Ainda que ela soubesse que era necessário controlar os gastos, após cada exame ou consulta, ele dava um jeito de levá-la a um café, barzinho, restaurante ou, como já dissemos, padaria.
Márcia o chamava de exagerado, mas sabia que eram verdadeiras cada uma de suas palavras.
– Vamos sim. Eu amo levar minha guria para passear.
Mas o último exame tinha sido há mais de um mês.
Nas últimas semanas, ele andava caladão, diferente e estranho.
Até que Márcia perguntou:
– O que está acontecendo, Arthur?
– Ué, não está acontecendo nada.
– Como é que não está acontecendo nada, Arthur! Você anda diferente. Nunca vi você assim. O que está acontecendo? Tem algum resultado de exame que eu não vi?
– Claro que não. Tu me conheces inteirinho. Por dentro e por fora. Não está acontecendo coisa alguma!
Ela não tocou mais no assunto.
Mas só dois dias.
Não aguentou e insistiu.
– Você nunca teve segredos para mim. Por que você não se abre comigo? Estou morrendo de preocupação.
Arthur olhou-a com ternura. Ela é o amor da sua vida. Não a queria triste e preocupada.
– Não podes morrer, não! Tu sabes que és tudo para mim. A razão da minha vida, a luz que me ilumina, o…
– Chega de poesia. Eu quero é saber o que está ocorrendo!
Márcia sentiu um calafrio quando ele olhou sério para ela. Pareceu que ia contar alguma coisa. Mas Arthur apenas ficou com os olhos mareados.
-Tu és a mulher mais linda do mundo. Eu te amo desde o primeiro dia em que te vi.
Desta vez, ela não se deixaria levar por elogios, embora soubesse que ele realmente sentia cada uma das palavras. (Como escreveu Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”).
– Arthur, vou perguntar uma última vez: o que está acontecendo?
– Deixa pra lá. É só um problema na empresa. Eu juro que é só um problema no trabalho.
Foi mais ou menos assim durante outras duas semanas. Ele, esquisito. Ela, incomodada. Até que ameaçou ir dormir na sala ou quarto de hóspedes.
Arthur viu que era sério.
Em 16 anos juntos, nunca tinham brigado a ponto de um dos dois ir dormir no sofá. Uma vez, quase aconteceu. Mas, quando a viu tomando o rumo da sala, disse:
– Fique. Não quero que tu vás dormir “Sofá Away for me”.
Daquela vez, ela sorriu. Como sempre. Desde o primeiro dia, gostou da sua alegria e trocadilhos, ainda que ele abominasse a expressão.
– Não faço trocadilhos e sim um exercício brilhante de associação de palavras, fatos e ideias…
Desta vez, a coisa era pra valer.
Desta vez, ela estava com o cobertor e travesseiro nas mãos; uma lágrima parecia querer escapulir pelo olho direito.
– Senta aí! – ele disse.
– Como eu falei, é um problema no trabalho. É que entrou no escritório uma chinesa chamada Xinyi.
Ela ficou confusa. Não entendeu direito o que isso significa. Mas – ela que nunca cobrava – exigiu logo uma explicação.
– A mulher se encantou por mim.
-E tu também está encantado por ela?
– Ora, é claro que não – respondeu surpreso e até indignado. – Tu sabes muito bem que só tenho olhos para ti!
– Então explica, Arthur! Diz logo, vai! Desembucha!
– É que o nome dela começa com X!
– E o que é que tem demais que a droga do nome de alguém comece com X? – indagou Márcia com surpreendente, mas compreensível irritação.
Aí ela ouviu uma história tão absurda que faço questão de reproduzir aqui – palavra por palavra – exatamente como ele contou.
– Tu sabes que te amo, que sou fiel, que todos os órgãos do meu corpo estão completamente voltados para ti, né?
– Sei…
– Aconteceu que, quase ao final da minha festa de despedida de solteiro, há 17 anos, naquela inocente e familiar pizzaria, com a presença dos meus poucos e bons amigos, o Luiz levantou a taça e brindou “ao último dos solteiros”! Logo após, o Robertinho, que estava ao meu lado, confidenciou-me, emocionado: “Achei que você nunca fosse se casar. Estava a cada mês com uma mulher diferente! Acho que você transou com o alfabeto inteiro”. Tu sabes, Márcia, do meu passado; que nunca curti a solteirice e que sofri na maioria dos relacionamentos. Em cada um deles, pequeno que fosse, esperava que finalmente tivesse encontrado a pessoa certa. Que sofria a cada término e que só fui feliz de verdade quando te conheci.
– Sei, Arthur. Você me disse isso no dia em que nos conhecemos. E sempre acreditei em você. Ao menos até agora.
– Mas aquilo mexeu comigo. Lembras que achaste estranho que só cheguei em casa às 3h, já que a pizzaria fechava à meia-noite? Nunca te contei isso, mas o fato é que depois fui sozinho a um café 24h, para fazer a checagem. Fazer a lista! Será que eu tinha realmente transado com o alfabeto inteiro? Peguei guardanapos e coloquei as letrinhas em, é óbvio, ordem alfabética, com dois pontos após cada uma delas: foram muitos guardanapos! Somente na letra A, eram sete nomes. Alguns repetidos, claro, não me recordo de todas as letras, mas também havia muitos nomes iniciados com C, P, R, L e, tenho que ser sincero, M. Mas faltava o X!
Ela olhava incrédula, enquanto o marido prosseguia.
– Fiquei arrasado. Nunca terminei nada na vida. O livro, iniciado na infância, não concluí. As aulas de violão ficaram pelo meio do caminho. O curso de inglês parei ao final do nível básico. Após a faculdade de Economia, recusei um emprego promissor para passar alguns anos mochilando no exterior. Na volta, fui contratado por uma multinacional. Subi rapidamente de cargo. Deixei a empresa para fundar meu próprio negócio! Mas nunca me dediquei muito. Não era feliz como empresário! Fechei antes da falência. Agora estou aqui com este meu trabalhinho bom, seguro e burocrático, mas não vejo a hora de me aposentar. Não fiz nada direito na vida. Nem mesmo o alfabeto eu terminei!
Vou encurtar a história, já que a ladainha foi grande, mas ele deixou claro que aos poucos a história da letra que faltava foi deletada do cérebro e que ele era “o homem mais fiel, apaixonado e feliz do mundo”.
– Mas, na verdade, não estava deletada. Estava é dentro de uma gaveta. Agora apareceu a Xinyi e tudo voltou à tona. Veja aqui a foto dela no meu celular. Nem ao menos chega perto de ser bonita! (Na verdade, independentemente do padrão estético que o leitor ou leitora tenha, este cronista assegura que ela era muito feia) – e fico pensando que ao menos esse ciclo eu poderia concluir na minha vida.
Desta vez, sim, pela primeira e única vez na vida, o casal não passou a noite junto. Ela dormiu no quarto. Ele na sala. Ou melhor, nem dormiu: cheio de culpa, se masturbou a noite toda, pensando na Xinyi.
No dia seguinte, também pela primeira vez em 16 anos, não tomaram o café juntos.
Ele saiu cedinho. Encabulado e triste.
Quando retornou, ela havia preparado um delicioso e romântico jantar: mesa posta, vinho e luz de velas.
Antes, ele foi tomar um banho, com a banheira cheia de espuma e sais minerais.
Na hora do jantar, após algumas conversas amenas, que o deixaram menos tenso que em todos os dias anteriores, Márcia falou:
– Estive pensando. Tenho certeza do teu amor e fidelidade. Eu te amo e não suporto ver a tua tristeza. Sei lá por quais mistérios você tem essa sensação de não ter concluído nenhum ciclo por inteiro. Também, como você é o único homem em toda a minha vida, não consigo entender bem essa história. Além disso, para mim, existe sim um ciclo completo. O nosso amor é um ciclo completo, que começou e não tem fim, porque é infinito! (Ele achou lindo isso!) Mas não quero que essa mulher, ou melhor, essa letra, seja um empecilho entre nós. Não quero que você pense nela ao invés de pensar em mim.
Ele respondeu:
– Sim, é a primeira vez na vida que sinto que há algo entre nós dois. E sofro demais por isso. Penso até em pedir demissão.
– Não faça isso! Quem garante que a letra não continuará a ser o ‘X’ da questão? – disse Márcia, surpresa com sua associação de letras, palavras, fatos e ideias melhor do que todas as que ele havia feito até hoje. E ainda mais surpresa com o que diria agora.
– Vocês têm que sair! Tens de levá-la para a cama e resolver de vez essa questão. Depois, você se demite!
Arthur tentou argumentar, mas foi da boca para fora. Sabia que ela estava certa. Como sempre, tinha razão. “Que mulher! Que mulher!”, pensou, entre admirado e orgulhoso.
No outro dia, uma quinta-feira, contou que sairia com Xiuyi no sábado seguinte. E que deixou claro que seria apenas uma noite, porque é casado e apaixonado pela esposa.
Jantariam e depois passariam algumas horas em um motel.
Ele ainda estava esquisito, mas nem tanto. Constrangido, mas novamente contando tudo, explicando para a esposa cada detalhe sobre o que estava combinado.
No sábado, quando voltou do supermercado – era ele que sempre fazia as compras – viu sua roupa sobre a cama e os sapatos engraxados. Havia uma camisa nova. E ao lado, uma outra que sempre lhe caía muito bem.
Márcia deixou o banho preparado. Depois, ajudou-o a se vestir e fez com que experimentasse as duas camisas. Optou pela antiga, que também era quase nova.
Quase na hora, escolheu um perfume e deu nas suas mãos.
– Harmoniza demais com a tua pele.
Ele pegou as chaves do carro e se preparou para sair. Olhou-a com amor. Seria a única vez, para nunca mais pensar em uma bobagem dessas, para pensar para sempre apenas nela, para terminar o ciclo.
Quando ele se preparava para deixar o apartamento, ela gritou:
– Espera!
O coração de Arthur bateu forte. Ela se arrependeu. Era mesmo uma tremenda bobagem. Ele não faria essa loucura.
Ela disse:
– Deixe-me ajeitar o teu cabelo.
Quando saiu com o carro da garagem, parou do outro lado da rua e olhou para cima. Lá estava ela, abanando discretamente, da janela do 13º andar.
Mesmo de longe, ele via e admirava sua beleza, elegância e companheirismo.
– Que mulher! Que mulher!
Márcia esperou que o Corolla sumisse na última curva da rua que descia perpendicularmente ao prédio. Não estava feliz, mas a vida é feita de ciclos.
Foi até a sala, abriu a pequena adega, tirou um vinho tinto. Tomou um banho rápido, colocou um vestido leve, pôs o vinho em uma taça de cristal e caminhou lentamente até o interfone. Após hesitar um pouco, digitou #112.
– Bernardo, não sei se você lembra de mim. Sou a vizinha do 135. Uma vez conversamos na academia aqui do prédio…
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Foto da Capa: Gerada por IA