Então, cá estou, com o meu pé literalmente fraturado e cercada de livros, tentando escrever sobre o amor, uma das partes do tripé de que falei no texto da semana passada. A ideia era ter escrito primeiro sobre ele, mas o sexo, talvez por mundano, de certa forma um carro-chefe na dinâmica que move as relações contemporâneas, atropelou o assunto. Vivemos mesmo em colisão, dentro de uma categoria, para não dizer egocêntrica e malvada, de estranhos prazeres, nos quebrando e sendo quebrados a todo instante, como se fôssemos máquinas. Nós, as mulheres, sendo tratadas como um eletrodoméstico a serviço da indústria de prioridades dos homens. De todos, mesmo dos que percebem o quanto ela processa a vida de modo desigual, pouco amoroso e repleto de erros, por vezes, premeditados.
Aristóteles, mais famoso que o Zorba e uma super-referência dentro do pensamento ocidental, gostava dos erros, entendia enganos como acontecimentos interessantes e valiosos. Anne Carson, poeta, helenista e uma das grandes tradutoras do grego, no livro Sobre Aquilo em Que Mais Penso, indo ao encontro do que ele falava, disse que “o quê da questão para os humanos é a imperfeição”. Pois é. Não sei você, mas eu sou um poço das mais variadas ordens de falhas, exceto as de caráter, o que não é pouco.
Pouco e pequeno, segundo algumas pessoas, é o meu amor. Sempre que ele é testado por meio de maus-tratos ou perversões, abandono o barco. “Os ratos são sempre os primeiros a abandonar o barco”, me disse um fulano especializado em sabotagem emocional quando falei Basta. “Você é uma mulher que não ama, Helena”, ele ainda me disse, tentando desqualificar a minha humanidade. Mas vai ver ele está certo. Venho praticando o verbo desistir e não desconsidero a hipótese de eu ter me tornado a versão tridimensional da música Não Amo Ninguém, do Barão Vermelho. Amei, sem dúvida, mas vamos ao que e a quem importa.
Número 1: Denis de Rougemont. Trago dois trechos. Você lê. E depois eu, mais ou menos, comento.
“O amor feliz não tem história na literatura ocidental e, se não for recíproco, o amor não é considerado um verdadeiro amor. O grande achado dos poetas da Europa, o que sobretudo os distingue na literatura mundial, o que exprime mais profundamente a obsessão do europeu é conhecer através da dor: eis o segredo do mito de Tristão, o amor-paixão simultaneamente partilhado e combatido, ansioso por uma felicidade que rejeita, glorificado por sua catástrofe: o amor recíproco infeliz”.
“A felicidade dos amantes só nos comove pela expectativa da infelicidade que os ronda. É necessária essa ameaça da vida e das realidades hostis que a afastam para longe. A saudade, a lembrança, e não a presença, nos comovem”.
Muito antes de comprar o livro em que estão esses trechos, História do Amor no Ocidente, ouvi essas falas no filme Romance, do Guel Arraes, com o Wagner Moura e a Letícia Sabatella, em que dois atores se apaixonam durante a montagem teatral de Tristão e Isolda, e a personagem da Sabatella diz de um jeito muito bonitinho: “Eu já sou feliz só por você gostar de mim”. Junto com essas falas, ouvi também a música Nosso Estranho Amor, que gosto e que admito, eu ia dizer confesso, me causa um misto de fascínio com mal-estar, inclusive físico. Meu corpo se confunde com as minhas emoções. Preciso fazer um grande esforço para não o submeter aos dramas da minha mente. Eu detesto sofrer. Ahã, todos dizem ‘eu detesto sofrer e depois se jogam na causa da dor com toda a força’, alguém pode estar pensando. É verdade. Assim como Habemus Papam, temos uma imensa quantidade de sabotadores afetivos entre nós. Gente que deseja amar e ser amado e que, quando isso está para acontecer ou acontecendo, dá um jeito de contar três, dois, um, zero e explodir tudo.
Eu já fui explodida. De um jeito patético, depois de ter dito à minha analista que eu havia tido um ano em que me sentia em um oxigenado e colorido jardim, fui surpreendida por uma floresta de espinhos, que me custou quase a vida, porque, de desgosto, adoeci. Nos contos de fadas, quando esse momento chega, em geral, a personagem má diz à boa: ‘Aqui começa o teu sortilégio’. Não é só nas histórias românticas que as pessoas têm de sofrer. É possível que eu ande sendo acusada de me negar ao amor por essa razão. Em todo o pacote que o Cupido me envia, ele costuma acrescentar doses demais de mágoas. E, aí, prefiro a sede a ter de engolir veneno. De amor, não quero morrer. Me falta nobreza para tanto. Ou me sobra saúde mental. “Respeito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada.”
Número 2: Fernando Pessoa. Trago também dois trechos. E a mesma coisa. Você lê. E depois eu, mais ou menos, comento.
“O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele a quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente? O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada”.
“Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia – os amores todos que são os absurdiandos do amor”.
Absurdiando. Conhece essa palavra? Soa como um verbo no gerúndio. Não a localizei no meu dicionário de estimação para confirmar o sentido e mesmo a sua existência, mas convenhamos, se está no Livro do Desassossego, existe com toda a potência da Literatura Portuguesa. E eu gosto dela, me impacta, vejo até uma certa ternura. Eu acreditaria mais em uma forma de amor que a considerasse e a ela se entregasse para que pudéssemos combater a tudo que de desagradável se sucede na vida, porque viver é ser outro e os outros sendo quem somos, reconhecendo a necessidade de iluminar nossos movimentos amorosos quase sempre gestados no lusco-fusco, apesar de todos os exageros que dele decorrem e de eu concordar com o Pessoa quando ele diz que “saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos”. Grandes amores são gestados em grandes devaneios e na generosidade e na compreensão de que ele é tão incompreensível quanto simples.
Número 3: Clarice Lispector. Dois trechos retirados de A Paixão Segundo G.H. E não, não é a mesma coisa. Você lê, é claro. Mas depois eu não comento. Não por má vontade, tampouco por preguiça. Silencio por falta de respostas e por sentir-me rondando uma certa melancolia.
“O inferno pelo qual eu passara – como te dizer? – fora o inferno que vem do amor. Ah, as pessoas põem a ideia de pecado no sexo. Mas como é inocente e infantil esse pecado. O inferno mesmo é o do amor. Amor é experiência de um perigo de pecado maior – é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior. Sexo é o susto de uma criança. Mas como falarei para mim mesma do amor que eu agora sabia?”.
“A desistência é uma revelação. Desisto, e terei sido a pessoa humana – é só no pior de minha condição que esta é assumida como o meu destino. Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe. Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço – viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono.”
Bem que eu gostaria de saber o que é o amor.
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Foto da Capa: Fernando Pessoa / Reprodução