A minha esposa é a culpada por eu ter precisado mudar, ou melhor, deixar de lado o texto que vinha escrevendo já há alguns dias para a minha segunda participação na “Sler”.
Geralmente é difícil encontrar um tema para uma coluna, mesmo que semanal. Como antecipei na semana passada, eu percorreria com interesse as manchetes e também notícias escondidas em cantinhos das páginas de jornais e revistas; veria com atenção redobrada os sites de notícias, mas também os de colunagem social e futilidades; observaria com o canto dos olhos e ouvidos bem aguçados as cenas de quem estivesse próximo ou à meia distância no metrô, em supermercados, no elevador, em bares e restaurantes e nas ruas de São Paulo.
Mas esse trabalho nem precisou ser feito. Já na noite de segunda-feira, ainda no mesmo dia da publicação da coluna de estreia, o assunto se impôs em forma de soco. Sim, estava decidido: escreveria sobre a agressão de Nahuel Medina, cinegrafista e sócio de Pablo Marçal, candidato do PRTB ao governo de São Paulo, em Duda Lima, marqueteiro do prefeito, Ricardo Nunes, candidato à reeleição pelo MDB.
Saber sobre o que escrever é apenas uma pequena parte da tarefa do cronista, ao menos para aqueles que não são iluminados permanentemente pela graça da inspiração. Estou entre aqueles que vivenciam nos ossos, na carne e na alma a famosa história de que para produzir arte é necessário ter 10% de inspiração e 90% de transpiração.
Não tenho qualquer constrangimento em confessar que brigo – e muito – para conseguir escrever um texto. Estou em boa companhia. Se até mesmo muitos gênios precisam lutar – sem socos! – para construir suas obras, também posso transitar entre o prazer e a dor para encontrar as palavras certas.
Carlos Drummond de Andrade, que já citei na primeira coluna, em seu poema “O Lutador”, escancara as dificuldades e necessidades do poeta e cronista para conquistar o seu pão nosso de cada dia.
“Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.”
Se até o maior poeta brasileiro luta com as palavras, como hei de culpar-me? Assim, lá vou eu – mesmo com o assunto já definido e o texto quase resolvido – trocar o mas pelo porém, o porém pelo contudo, o contudo por todavia, a todavia pelo entretanto, em contrapartida, no entanto, ainda assim, de qualquer forma, apesar disso, não obstante….
De terça-feira até ontem à noite aproveitei os poucos minutos livres, entre assuntos e atividades diversos, para aprimorar e dar mais ritmo ao texto.
Mas – e tenho que voltar ao tema inicial da crônica, que é a culpa da Maria Gontow – aconteceu que hoje pela manhã, após um jejum de quase 15 horas, entramos em uma padaria no tradicional bairro paulistano da Vila Mariana. Foi por volta das 10h, pouco depois de sairmos do Centro de Saúde, onde realizaram a coleta do nosso sangue a pedido dos médicos.
Ao sentarmos, Maria, disse:
– Logo que entrei aqui fiquei com vontade de chorar.
Olhei-a com cumplicidade. Achei que se referia ao fato de tantas vezes, nos anos em que vivemos no Exterior, termos sonhado com uma boa padoca paulistana.
– Duas médias, dois pães franceses canoa na chapa bem prensados, mas macios… e um bauru também prensadinho, por favor!
Soava, como música, nas recordações, o nosso tradicional pedido.
Essas lembranças vinham nos bons e maus momentos. Nos últimos meses, enquanto cobríamos para rádios e televisões a guerra entre Israel e Hamas, nas horas de maior tensão gostávamos ainda mais de nos imaginar em praias brasileiras ou saboreando as delícias da gastronomia paulistana.
As padarias, repito, sempre estiveram entre as nossas mais saudosas lembranças.
Tudo isso passou muito rápido pela minha cabeça, já que Maria prosseguiu:
– Pensei na minha mãe. Depois que ela ficou doente, sempre que íamos aos médicos, especialmente para exames, a gente depois rumava para uma padaria. A enfermeira mal tinha colocado o curativo no seu braço e ela já dizia: “Vamos para a padaria!” Ao chegar, como boa mineira, pedia pão de queijo, café com leite! Como gostava!
Olhei novamente para a Maria que agora tomava uma xícara de média – café com leite. Determinada, batalhadora, agora parecia frágil. Perdeu há dois meses a mãe nossa de cada dia, aquela que esteve ao seu lado desde o primeiro momento, mesmo antes do nascimento. “Aquela que muito antes das primeiras padarias foi responsável pelo primeiro leite”, pensei.
Perguntei sobre o que falavam.
– Sobre tudo. Era sempre gostoso e animado. Aos poucos, com o avanço do Alzheimer, as conversas foram ficando mais silenciosas. Depois, a minha mãe parou fazer os pedidos. Eu é que pedia! Mesmo assim, ainda ficávamos um bom tempo nas padarias. Passamos a trocar pouquíssimas palavras. Minha mãe já não olhava ao redor. Era como se só existissem eu, o café com leite, os pães de queijo, às vezes um pedaço de bolo. Ela não falava nada, mas eu via e sentia que ela continuava gostando.
Lembrei-me de quando a vi Maria pela primeira vez, em um baile de Carnaval (Carnaval à Moda Antiga) que eu havia criado em São Paulo. O salão estava lotado, com uma multidão de agitados e alegres foliões. Mas foi como se não houvesse mais ninguém. O mundo havia parado ou melhor, girava em câmara lenta e desfocado, como se só existisse a Maria naquele salão.
– Que falta faz a minha mãe, disse Maria.
Observei as pessoas na padaria. Havia grupos de amigos e colegas de trabalho conversando animadamente. Um homem sozinho mexia em seu notebook em uma mesa. Vimos, Maria e eu, também um pai e uma filha, que há pouco também estavam no posto de saúde. E um casal, que igualmente tínhamos visto na sala de espera.
Os quatro estavam com os celulares nas mãos!
Senti vontade de levantar, aproximar-me e contar aos quatro sobre a falta que minha esposa sente da mãe. Não achei conveniente. E desisti. Mas não de contar a história. Por isso, a conto para você que está lendo esta crônica.
Cheguei em casa ao final da tarde, pronto para escrever um novo texto. Não foi difícil. Ele até que fluía com naturalidade, mas eu estava escrevendo com o coração apertado. Fiquei com vontade de visitar minha mãe.
– Mas é tarde. São 22 horas. Tenho a crônica para terminar e amanhã tenho que acordar cedo. Não vou não.
– Mas se algum cliente ligar agora e falar que precisa conversar comigo. Ou se alguém pedir que eu escreva algo sobre a situação no Oriente Médio, sobre o Grêmio, sei lá, vou encontrar tempo sim – pensei.
Maria não aceitou o convite para ir junto.
– Sabe que amo estar junto, mas acho importante que você hoje você vá sozinho.
Entrei no meu carro. No meio do caminho telefonei para minha mãe:
– Mãezinha, vamos jantar?
– Oi filho, são 22h, eu até já jantei. Não está tarde para ti?
– Estou pertinho do teu apartamento. Quer ir ou não pô!?
– Quero, quero sim, respondeu.
– Pode descer em 15 minutos.
Ao chegar vi minha mãe junto à escadaria do prédio, do lado de dentro do portão. Vestia um conjuntinho, com vestido e blazer da mesma cor. Também a bolsa combinava com o tailleur.
– Como conseguiu ficar pronta e tão bonita em tão pouco tempo?
Fomos a uma cantina paulistana. Se o garçom ouvisse que nós dois já havíamos jantado, não acreditaria, de tanto que comemos. Aos 85 anos, minha mãe, que já não enxerga muito bem, lê uma revista semanal inteira (“leio na ordem das páginas e não pulo nenhuma página, até a final!”) e dois ou três livros por mês. Como sempre, a conversa correu solta e alegre.
Deixei-a às 2h em seu edifício e imagino que amanhã (hoje) contará a travessura para muitas das suas amigas.
– Eu já havia jantado, ele ligou às 22h40, chegamos na cantina às 23h…
São 4h e estou terminando agora a coluna, já com o prazo estourado. Não darei uma burilada no texto. Não trocarei o mas pelo porém, o porém pelo contudo, o contudo por todavia, a todavia pelo entretanto, em contrapartida, no entanto, ainda assim, de qualquer forma, apesar disso, não obstante….
Hoje não enviarei o texto sobre um soco.
Nem lutarei com palavras!
Hora de enviar a crônica para o publisher Luiz Fernando Moraes e, depois, tomar um banho, deitar na cama e dormir, abraçado, com minha mulher.
Nem sei se deveria terminar com uma “moral da história”, mas que esta crônica te inspire a viver ainda mais momentos inesquecíveis, mesmo os mais simples, com as pessoas que amas.
Foto da Capa: Freepik
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