Um dos meus primeiros artigos na Sler, publicado em 19 de julho de 2022, falava sobre a discriminação enraizada que, além de estampada nos olhares invasivos, está nas definições dos dicionários, na fala e na escrita, através do uso preconceituoso de algumas palavras. E anão é uma dessas palavras que andam por bocas medíocres, que dizem o que querem para ofender, ironizar, desmerecer e por aí afora. Pois, nos últimos dias, mais um uso inadequado somou-se aos tantos já existentes – “O Anão Voltou”. Este é o título do artigo de Alexandre Garcia publicado no jornal Correio do Povo, página 4, Editoria de Política, em 21 de fevereiro. O colunista, que não me surpreende, refere-se aos acontecimentos recentes que envolveram Brasil e Israel por conta de uma declaração do presidente Lula e lembrou de um episódio de 2014 em que o porta-voz do Ministério do Exterior de Israel, Ygor Palmor, chamou o Brasil de “Anão Diplomático”.
O preconceito não dá trégua mesmo! E esperar sensibilidade e respeito de um colunista assim é ingenuidade. Lamento mais um uso indevido da palavra e fica aqui o registro.
Penso que talvez seja o momento de radicalizar minha posição porque não dá mais para suportar o que constrange e ofende pessoas com nanismo. É lamentável a segregação contida nos comentários grotescos de comunicadores inescrupulosos em jornais, em programas de rádio e televisão e em piadas vulgares que tumultuam as redes sociais. O colunista pode escrever sobre o que ele quiser, assim como os jornais podem publicar as matérias que quiserem, mas o mínimo de ética seria muito saudável. Será que nenhum editor se deu conta do preconceito escancarado no que ele escreveu? Ninguém pensou em buscar um contraponto?
“Não dá mais pra segurar, explode coração”, diz a música de Gonzaguinha!
No ano passado, em um encontro da Frente Parlamentar de Valorização e Defesa dos Direitos das Pessoas com Nanismo, fui escolhida Embaixadora e representante do movimento no Rio Grande do Sul pelo meu ativismo. Esta é uma luta que assumi, ainda com a minha irmã, no momento em que tomamos consciência e entendemos o quanto o preconceito nos agredia cotidianamente. É muito triste perceber que anão ainda é uma palavra usada para adjetivar situações grotescas, indignas e engraçadas, o que é pouco e provoca o riso fácil. Retomo aqui uma explicação que encontrei em dicionário do Google: “Significado de Anão. Substantivo masculino. Aquele que, em relação à média, tem uma altura muito reduzida. Quem sofre de nanismo, pequenez anormal em relação aos demais indivíduos. [Pejorativo] Quem é muito baixo, raquítico, fraco, nanico”. É uma definição que desconhece a nossa condição e termos como “raquítico, fraco” já estão contaminados pela discriminação.
Já escrevi muito e sigo escrevendo sobre esses usos indevidos que respingam muito na minha vida. É o caso de expressões como “O ano ou um anão?” (artigo de Flávio Tavares publicado no jornal Zero Hora no final de dezembro de 2019, referência ao ano considerado medíocre), “salário com perna de anão” (referência ao salário baixo), “anão moral” (Ciro Gomes sobre Michel Temer na época do golpe), “anões do orçamento” (grupo de deputados envolvidos em fraudes no final dos anos 1980), ou seja, a corrupção de políticos no poder e as ofensas entre países, como Brasil e Israel, estão vinculadas diretamente à estatura das pessoas com nanismo. Cansei!
Mas o uso preconceituoso de muitas expressões está tão entranhado no inconsciente coletivo que poucos estranham. E quem sofre são as pessoas “diferentes”, com alguma deficiência, os negros, os índígenas, os grupos LGBTQi+, enfim! As pessoas com nanismo sofrem desde os tempos medievais, passando pelos regimes fascistas, quando a recomendação era que fossem eliminadas. Os seres “imperfeitos” incomodam e vão seguir incomodando porque apontam para uma diversidade de condições, comportamentos e hábitos ainda rejeitados por uma sociedade capacitista, presa ao senso comum, que não consegue ver talento em uma “pessoa diferente”.
O que me cabe neste contexto é pedir respeito, sem medo da minha diferença e das dificuldades que vêm com ela. Até porque “piadinhas ingênuas e sem maldade” também machucam. Cansei!
(Releitura de um texto que escrevi em 11 de julho de 2022)