A crítica literária é um ofício arriscado… Claro, essa frase é um “gancho” provocador para fisgar sua atenção, e não quero dizer com ela que um crítico literário corre mais perigo no seu trabalho do que operários na construção civil, na manutenção de redes elétricas, mineradores no fundo de uma mina ou operadores de torre em petróleo e gás. Quero dizer que a crítica literária, sendo um trabalho realizado no presente com um olho no passado e outro no futuro, não está isenta de riscos, em especial porque um certo tipo de aposta é inerente ao seu trabalho de catalogação, com possibilidade grande de falha a longo prazo. Aliás, e agora não estou brincando, nesse aspecto específico, a crítica literária corre mais riscos do que a maioria dos corretores do mercado financeiro, porque o crítico aposta a própria reputação, enquanto os Farialimers arrombados e seus assemelhados apostam o dinheiro dos outros.
Peguemos meu exemplo favorito. O escritor, advogado e considerado por muitos um patrono da moderna crítica literária no Brasil, Silvio Romero (1851-1914). O sergipano Romero foi a grande autoridade crítica de seu tempo de atuação, mais especificamente nas últimas décadas do século XIX. Uma figura como Antonio Candido, o grande referencial crítico para muitos estudiosos de letras, dedicou a ele um livro, O método crítico de Silvio Romero, no qual argumenta que o diferencial de Romero em comparação com os que exerciam o ofício antes dele ou em sua época foi justamente transcender certo caráter “impressionista” da crítica do período e aplicar à leitura um “método” de fato, de pretensão e inspiração científica.
Já eu acho uma pena que seja justo esse “método” o responsável pela grande e máxima falha de julgamento de Silvio Romero como crítico, aquela que me faz, mais de cem anos depois, olhar para todo o resto de seu trabalho com uma certa desconfiança: Romero, o maior crítico literário do Brasil em seu tempo, aquele que se dedicou a aplicar laivos científicos à atividade de leitura crítica, simplesmente fracassou de modo espetacular em enxergar que vivia na mesma época que o maior autor brasileiro, Machado de Assis. Pior: Romero não apenas não via a grandeza de Machado, ele o desprezava e escreveu um número surpreendente de páginas para declarar que Machado só era quem era por algum compadrio, ou que Machado escrevia mal, ou que seus versos eram medíocres. Esse é o risco da crítica: falhar de modo tão espetacular que sua miopia será registrada de modo anedótico na história.
Em seu livro sobre o “método” de Romero, Candido claramente elogia no crítico sergipano as características que prenunciam seu próprio trabalho. Silvio Romero não era um adepto da crítica que se dedicasse apenas à obra, dissociada de seu contexto. Pelo contrário, seu método, transplante de ideias cientificistas europeias em voga no período, de algum modo ensaiava um olhar “histórico-sociológico” sobre cada texto, uma aproximação que, descrita assim, não parece ter nada de errado. Mas que fica um pouco mais desconfortável quando começamos a nos aproximar dela e percebemos que, nas palavras de Candido, Silvio Romero não se dedica à mera leitura dos textos, mas pretende “descer à análise dos fatores condicionantes – meio, raça, evolução social, tradições”.
Romero, assim, via cada escritor – e, por extensão, a obra desse escritor – como o resultado inescapável de uma equação matemática em que os fatores seriam o meio social, a educação e a “hereditariedade, não só física como étnica” (palavras dele, não minhas). Quem não tivesse os fatores certos, não poderia jamais transcender “a lei comum” – algo que ele declarou textualmente sobre Machado de Assis, aliás.
A origem
Sejamos honestos: quem começou (ao menos publicamente) a treta, esta palavra tão moderna, ou a polêmica, como se chamava no período, entre Romero e Machado foi este último, que escreveu um artigo em 1879 para a Revista Brasileira chamado A nova geração. O texto é uma tentativa panorâmica de mapear, como promete o título, a então “nova geração” de poetas e ao mesmo tempo indagar se essa nova geração, “viçosa e galharda, cheia de fervor e convicção”, está produzindo na forma e no estilo algo de fato novo ou apenas repetindo modelos. É uma leitura bastante interessante porque Machado basicamente faz uma súmula de muitas discussões que se levavam na época sobre “como deve ser a literatura nacional” (sim, tem uma dessas por década desde pelo menos o século XVIII).
A certa altura, chegamos ao estopim da inimizade: Machado de Assis, que era 12 anos mais velho e também via Silvio Romero como um dos nomes dessa “nova geração”, elogia a dedicação intelectual do outro, mas ressalva que lhe falta estilo:
“É uma grande lacuna nos escritos do Sr. Sílvio Romero; não me refiro às flores de ornamentação, à ginástica de palavras; refiro-me ao estilo, condição indispensável do escritor, indispensável à própria ciência – o estilo que ilumina as páginas de Renan e de Spencer, e que Wallace admira como uma das qualidades de Darwin”.
Ou seja, na prática, Machado diz que Romero era muito estudioso e erudito, mas que seus textos eram chatos pra cacete. A seguir, discorre mais longamente sobre os versos que Romero havia publicado na coletânea Cantos do fim do século, publicada no ano anterior, reunindo poemas escritos entre 1869 e 1873 – época de exacerbação romântica, mas Romero se apressa em apontar no prefácio do livro que seus poemas eram uma reação ao romantismo que tentava não retornar ao classicismo que já havia passado nem se engajar no realismo que era a resposta padrão.
Machado de Assis afirma algo que deve ter ofendido muito Romero na época, mas que, em retrospectivo, se provou verdadeiro: o autor era erudito e inteligente, mas não tinha a manha da poesia:
“Que o Sr. Romero tenha algumas ideias de poeta, não lho negará a crítica; mas logo que a expressão não traduz as ideias, tanto importa não as ter absolutamente.”
(Um parêntese de quem leu o livro de Romero mais de cem anos depois: Machado estava certíssimo, metade dos poemas parece prosa separada em linhas e a peça de maior interesse nesse volume não são os poemas, e sim o prefácio de inacreditáveis 22 páginas que o próprio Romero escreveu para sua coletânea de versos).
Voltando ao artigo de Machado, talvez eu pudesse descrever a reação de Romero de formas mais elegantes, mas acho mais divertido dizer que o maluco ficou putaço.
Paixão real, ciência torta
Romero passou anos escrevendo textos nos quais desqualificava Machado de Assis como escritor, comparava-o sempre desfavoravelmente a outros autores do período e até mesmo lançava pesadas alfinetadas pessoais. Sabendo-se que Machado era acometido de uma leve gagueira, e que, segundo depoimentos de seus contemporâneos, tal fato o incomodava, é possível avaliar o grau de veneno contido neste trecho em particular no qual Romero pela milésima vez explica o que considera as fraquezas estilísticas do bruxo do Cosme Velho:
“Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta. Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada, disse-me uma vez não sei que desabusado num momento de expansão, sem reparar talvez que dava destarte uma verdadeira e admirável notação.”
É divertido para mim pensar em Romero como alguém que tentou trazer um viés lógico e científico para a atividade da crítica literária quando, por tudo o que se sabe de sua biografia, boa parte de seus escritos e das polêmicas em que se envolveu, e foram muitas, foram motivadas por um temperamento irascível e passional. Tanto é assim que precisou revisar muitos de seus pareceres judiciosos sobre figuras das quais havia falado vitriolicamente mal anos antes (um dos casos mais conhecidos é o de Joaquim Nabuco). Já com Machado de Assis a coisa parece ter sido diferente. Embora parte de seu veneno contra o autor de Dom Casmurro se atenuasse com os anos, a má vontade e a inconformidade de Romero com o status a que Machado estava sendo alçado já em vida se mantiveram para sempre.
Ao ponto de a grande tese defendida por Romero em seu livro Machado de Assis: estudo comparativo de Literatura Brasileira, compilação de artigos publicados anteriormente na imprensa, ser que Machado de Assis era um falso semideus injustamente alçado ao pedestal de maior entre os seus pares (o conceito é dele, mas não ponho entre aspas porque estou citando de memória e posso estar equivocado na ordem e nos próprios termos). E para isso, o livro que se chama “Machado de Assis” basicamente se ocupa ao longo de mais de 300 páginas a diminuir Machado na comparação com vários outros poetas, como Fagundes Varella, Castro Alves e, em especial, Tobias Barreto (1839-1889), amigo pessoal de Romero, já falecido quando o livro foi publicado, em 1897.
A razão dos erros
Fazer esse tipo de julgamento a posteriori é meio perigoso, mas não sou o único a apontar que talvez parte da má vontade de Romero com Machado de Assis venha de sua visão “científica” da literatura, que se aproximava perigosamente do “racismo científico” europeu de onde essas ideias vinham importadas. Mas, apropriadamente a um autor cujo último livro eram memórias confessionais chamadas Minhas contradições, Romero tinha um ponto de vista sim racista, mas que percorria um caminho algo diverso. Acreditando piamente na superioridade das “raças brancas europeias”, Romero afirmava que o Brasil era um país mestiço, senão na etnia, pelo menos na alma (de novo, ele escreveu algo parecido com isso, mas estou citando de memória). Mas que o próprio elemento português já trazia em si, de acordo com ele, a “decadência” de outros povos “não brancos” infiltrados na sua composição. Traduzindo: para Romero, não eram também os portugueses tão brancos assim.
Sua conclusão, derivada desse entendimento, seria investir ainda mais na miscinegação como forma de “branquear” a sociedade brasileira (uma declaração que hoje nos provoca certa inquietação, mas que foi enunciada abertamente como política de governo durante décadas). Ou, como explica Lilia Moritz Schwarz no livro O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870 – 1930:
“Apesar do “elogio à mestiçagem”, não se deve incorrer no engano de procurar em Silvio Romero um defensor da igualdade entre os homens. Ao contrário, esse pensador foi um fiel seguidor do determinismo racial. ‘Não tenhamos preconceito, reconheçamos as diferenças’, dizia o intelectual em 1887, como que anunciando um momento em que o poligenismo constituía uma verdade tão absoluta quanto a famosa igualdade declarada pela Ilustração. O debate sobre a origem única dos homens era então transformado em um falso problema quando contraposto ‘à uma desigualdade original, brotada do laboratório da natureza, aonde a distinção e a diferença entre as raças aparecem como fatos primordiais frente ao apelo da avançada ethnografia.”
Ao mesmo tempo, em outros tópicos, não foi sempre que Romero esteve errado ou falou bobagem. Sua avaliação pouco otimista da Guerra do Paraguai é hoje meio que o consenso, condenando a aventura imperialista como a destruição de um país. Uma das suas grandes ressalvas a Machado é que ele era melhor prosador do que poeta – entendimento hoje perto do consensual na apreciação da obra do bruxo. Ainda assim, parece pouco quando se pensa que esse cara viu a obra de Machado ser produzida ao vivo e não soube compreendê-la. Porque estava cego pela própria vaidade ferida, por um lado, e pelas teorias já meio ultrapassadas na origem que ele insistiu em transferir para o Brasil. É esse o risco de escrever a crítica no calor da hora.
Reconheço em Romero ao menos o ânimo de ter se entregado a essa tarefa com paixão e vontade. Mas também me lembro do aforismo que Walter Benjamin cunhou em seu livro Rua de mão única: “O crítico é o estrategista na batalha da literatura“. Ou seja, o papel do crítico é fundamental na “fabricação do consenso” (e aqui uso esse conceito evocando voluntariamente a acepção manipulativa que Chomsky usa na expressão) da literatura, suas tendências, sua avaliação, a escolha do que fica e do que será esquecido.
É curioso que essa formulação não parece longe do que o próprio Romero pensava ao se ler alguns de seus textos, como o que o próprio Machado cita no tal ensaio A nova geração que provocou essa inimizade de décadas:
“O lirismo não pode satisfazer as necessidades modernas da poesia, ou, como diz o autor, – ‘não pode por si só encher todo o ambiente literário; há mister uma nova intuição mais vasta e mais segura’. Qual? Não é outro o ponto controverso; e depois de ter refutado todas as teorias, o Sr. Sílvio Romero conclui que a nova intuição literária nada conterá dogmático; – será um resultado do espírito geral da crítica contemporânea“. (grifo meu)
Também Romero, portanto, via o crítico como o estrategista da batalha literária.
O que não deve ser desculpa para nada, claro. A história bélica também é implacável com os estrategistas que perdem.
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Machado de Assis e Silvio Romero / Montagem do Autor