Qualquer leitor com alguma experiência de literatura nacional poderia dizer, sem a necessidade de dados estatísticos, apenas lendo mais do que cinco livros em sua perra vida, que é um fato que pretos e pardos são maioria na população brasileira e, ainda assim, estão praticamente ausentes da literatura nacional. Mas, como vivemos mais um ciclo recorrente da idiotia mal-intencionada da sociedade brasileira, os dados estatísticos existem para quem decidir insistir neles. O Grupo de Estudos de Literatura Brasileira da Universidade de Brasília, coordenado pela professora Regina Dalcastagné, vem realizando uma pesquisa entre romances brasileiros publicados por grandes editoras ao longo da segunda metade do século XX. Foram analisados centenas de romances brasileiros em três períodos cronológicos distintos: de 1965 a 1969, de 1990 até 2004, de 2005 a 2014. No primeiro período, 93% dos escritores publicados por grandes editoras eram brancos. Entre 2005 e 2104, esse número aumentou para 97%. Nessa mesma década, negros e pardos representavam, respectivamente, 6,3% e 6,9% dos personagens nas obras pesquisadas.
Entre outras coisas pela pressão dos movimentos negros, algo está mudando nesse panorama nas últimas duas décadas. Um número maior de autores atingiu maturidade artística e está tendo maior visibilidade, como Paulo Scott, José Falero, Ferréz, Geovani Martins, Ana Maria Gonçalves. Nomes que já estavam em atividade há décadas passaram a ser redescobertos, como Conceição Evaristo. Dentro desse movimento, podemos incluir também a ascensão recente de Jeferson Tenório (foto da capa), que obteve reconhecimento nacional com seu terceiro romance, O Avesso da Pele, publicado em agosto de 2020.
E que agora, devido a um vídeo gravado por uma diretora de escola da cidade gaúcha de Santa Cruz, está sendo apontado como uma espécie de novo Nelson Rodrigues pós-moderno (isto é uma piada, estou rindo é de nervoso).
A referida diretora, ao ler o livro, encontrou o que ela considerou linguagem de baixo calão. Uma frase fala em pau. Outra em boceta. Para ser justo e preciso, há duas ocorrências da palavra “pau” assim mesmo, como sinônimo de “pênis”, no livro. E uma de um pau que é um pau mesmo, um pedaço de pau utilizado por um personagem para ameaçar alguém. Há uma ocorrência de “boceta” no livro. Acho que há um ou dois “filhodaputa”, também. Alguns “babacas”. Em um livro com 190 páginas. E ainda assim, a diretora, em sua declaração, decidiu comparar o livro a 50 Tons de Cinza, romance declaradamente erótico (no qual, aliás, a ocorrência de “pau” também é modesta. Só um. Em compensação, há duas “vaginas”, algumas “vaginal” e nenhuma “boceta”).
O Avesso da Pele foi selecionado pela própria escola para seus alunos de Ensino Médio dentre uma lista de 531 obras constantes do PNLD 2021, aprovado ainda no governo Bolsonaro (para mim, essa era a verdadeira notícia, o verdadeiro assombro, verdadeiro delírio. Saber que uma lista de razoável qualidade literária ainda foi aprovada durante aqueles anos tenebrosos). Alguém na escola deve ter lido ou ouvido falar dele e achou que era uma obra boa de ser discutida com os adolescentes. A diretora, ao ler o livro, se sentiu incomodada com dois trechos com linguagem mais explícita falando sobre um momento específico do relacionamento entre dois personagens. Gravou um vídeo alarmado e sensacionalista condenando “o MEC” por enviar “esse tipo de livro para as escolas”. Não é o MEC que seleciona os livros no universo de mais de 500 indicados, são as escolas. A diretora tentou dar um desdobre que não foi o caso da sua escola. Tanto foi que a assinatura no pedido enviado ao MEC era dela, a diretora. Assinou não apenas sem ler os livros, mas, aparentemente, os próprios documentos nos quais apôs sua firma. Agora, acossada pela vergonha passada no crédito, do débito e no PIX, a diretora fala em sindicância para descobrir quem de fato escolheu esse livro. Aparentemente, há movimentos algo bovinos que se sucedem em uma sequência de efeitos cascata. Depois do vídeo da diretora, também a Secretaria Estadual de Educação do Paraná mandou recolher todos os exemplares do livro comprados pelas escolas do Estado. Para que seja efetuada uma “revisão” na obra e decidir se ela deve ou não continuar no programa. Imagino que o que eles chamam de “revisão” seja finalmente alguém ler o diabo do livro, algo que já devia ter sido feito antes nos dois casos. Como os envolvidos nesse jogo de empurra não parecem ter lido o livro ou ouvido falar dele antes, me permito eu mesmo dar uma apresentada antes de seguirmos adiante. Vai que seja útil (é uma piada, estou rindo de nervoso).
O livro
O Avesso da Pele, publicado no início de agosto de 2020, é um romance muito ambicioso que parte de um episódio de violência policial motivada pelo racismo para construir um amplo e comovente panorama familiar. O centro da narrativa é o depoimento de Pedro, homem negro que, na idade adulta, tenta reconstituir a vida de seus pais Henrique e Marta, com foco especial na narrativa de Henrique, professor morto em uma abordagem policial. Guardadas, as proporções, pode ser dito de Henrique algo que o ator e diretor americano Donald Glover já disse sobre a experiência de escrever sua premiada série de TV Atlanta: a experiência de ser negro equivale a viver constantemente sob estresse pós-traumático. A narrativa de O Avesso da Pele se constrói com a sobreposição de vários episódios em que Henrique é alcançado por uma percepção semelhante.
Embora narrada em um estilo sofisticado e sóbrio, a vida de Henrique é uma tragédia brasileira. Abandonado pelo pai com um ano de idade, maltratado pelas professoras da creche popular em que a mãe, por necessidade de trabalho, precisa deixá-lo. Também é atormentado desde muito jovem também por uma úlcera, e o tempo todo confundido com um suspeito quando anda na rua. Forma-se professor, mas permanece um tanto inseguro diante das marés cada vez mais numerosas de alunos indiferentes ou até mesmo agressivos.
Muito da inquietação de Henrique e da descoberta de que essa inquietação é um efeito do racismo cotidiano velado no Brasil transborda para as próprias relações emocionais do personagem. A primeira namorada séria de Henrique é Juliana, uma mulher branca. É aí nessa parte do livro, aliás, que estão os episódios que horrorizaram a professora de Santa Cruz. Eles não são gratuitos, aliás, são uma forma de registrar no plano da literatura uma fatia da realidade de um relacionamento interracial numa sociedade como a brasileira. Ambos são encantados pelo contraste de suas peles e seu romance se harmoniza numa crença ingênua de que seu amor vive à parte do racismo social. Até que o mundo externo bate à porta e as coisas vão mudando de figura, com Henrique passando a ser, nas palavras do próprio livro, “uma espécie de para-raios de todas as imagens estereotipadas sobre os negros”. É nesse contexto aparece uma das frases específicas que escandalizaram a diretora: as amigas de Juliana perguntam constantemente à moça se Henrique faz jus ao estereótipo racial recorrente sobre homens negros: “Tem pegada mesmo, como dizem dos negros? E o pau dele? É grande? É verdade que eles são insaciáveis?”. Analisadas na inteireza do parágrafo, tais frases ganhas conotações bem diferentes da “pornografia” insinuada pelos defensores do recolhimento do livro, provando que contexto é mesmo a base de tudo.
A determinado momento do relacionamento, Juliana se ressente do fato de que Henrique vai se tornando cada vez menos confortável com as instâncias cotidianas do “racismo cordial” brasileiro, uma experiência que a namorada branca e sua família muito confortável em fazer “piadas de negrão” perto do jovem minimizam como uma tendência do próprio Henrique de “ver racismo em qualquer coisa” – um discurso muito ouvido e lido nas redes sociais a cada novo episódio, inclusive neste envolvendo Jeferson Tenório. A questão é que a experiência da formação universitária dá a Henrique as ferramentas intelectuais para articular uma verdade que para ele já existia, mas perdida na névoa da confusa sociabilidade brasileira: sim, na vida de uma pessoa negra do Brasil, qualquer coisa passará inevitavelmente por cor de pele – e pelo racismo:
“Na primeira vez que ouviu falar em consciência negra, você não compreendia que a sociedade se importava mais com a sua cor do que com o seu caráter”.
Ele e você
O livro lança mão de um recurso narrativo sofisticado e até mesmo arriscado. A história é narrada o tempo todo por Pedro, o filho, embora o foco da narrativa se desloque por vezes para Henrique, por vezes para Martha. Quando a narrativa foca a vida dos pais, na verdade Pedro continua sendo o narrador, dirigindo-se alternadamente ao pai e à mãe em segunda pessoa, como se os interpelasse e contasse a eles sua própria história, como neste trecho:
“Você caminha até o fundo da sala onde está o aluno que levantou a mão e, ao se aproximar, ele diz que precisa sair. Você percebe que o rapaz não parece bem. Ele está pálido e com os olhos vermelhos. A turma está em silêncio, alguns atentos aguardando a reação do professor. No entanto, antes mesmo que você pense em dizer algo, o menino projeta o corpo para a frente e vomita em cima de você. Agora a turma inteira olha na sua direção. Alguns riem. O rapaz tosse e ainda vomita mais um pouco. É o seu segundo ano naquela escola e, dentre muitas coisas vividas ali, naquele dia você aprendeu que, quando um aluno pálido, com olhos vermelhos, levanta a mão pedindo para sair durante uma prova, é bom não chegar muito perto e deixá-lo ir”
É um recurso que, se usado equivocadamente, pode levar ao desmoronamento da arquitetura do romance. Mas não é o que acontece aqui. Pelo contrário, O Avesso da Pele sobressai pela segurança e pela precisão com que Jéferson maneja tecnicamente esse artifício que também pode transformar esses trechos em uma interpelação não apenas aos personagens do pai e da mãe, mas do próprio leitor. Eis aí o propósito dessa escolha: forçar, por meio da forma, o leitor a também se ver como esse “você” e avançar no livro “na pele” dos personagens, tentando inverter aquele que é o mote crucial do livro, a solidão imposta aos negros pela falta constante de empatia dos brancos à sua volta.
Muito da força do romance vem de uma certa tristeza patética despertada em nós ao perceber que a luta de Henrique por viver uma vida melhor, mais digna do que a que viveram seus pais, por viver em um mundo em tese diferente do que o que eles viveram, está fadada a ser abortada em um episódio em que o racismo é o elemento definidor (não estou dando aqui nenhum spoiler porque a morte do pai já é anunciada no próprio material paratextual do livro, como o texto de contracapa ou a orelha).
Então, assim: no final da leitura, quem tiver atravessado as páginas de O Avesso da Pele terá passeado por uma obra comovente e cuja narração é segura e ao mesmo tempo muito elegante. Direta, sóbria, mas sem abdicar de uma beleza estética pungente, como mostra o trecho inicial:
Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você nunca soube ir embora. Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. No entanto, você entrou e saiu da vida, e ela continuou áspera. Há nos objetos memórias de você, mas parece que tudo que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você. É com eles que te invento e te recupero. É com eles que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar. Talvez eu deseje chegar a algum tipo de verdade. Não como um ponto de chegada. Mas como um percurso que vasculhe os ambientes e dê início a um quebra-cabeça, um quebra-cabeça que começa atrás da porta da sala, onde encontro um alguidar de argila alaranjada. E, dentro dele, uma pedra, um ocutá, enrolada em guias de cores vermelhas, verdes e brancas, um orixá. Observo-a com cuidado. É assim que se adentra numa vida que já se foi.
Claro, se você ainda depois disso estiver fissurado nos palavrões, meus parabéns. Você tem a mentalidade ainda mais fissurada em “pensar naquilo” do que os seus alunos de 17 anos. Aliás, analisando a lista inteira do PNLD, não faltam exemplos ali de livros capazes de deixar “titilante” o jovem leitor em idade escolar. O Cortiço, por exemplo, de Aluísio Azevedo, era, já na minha adolescência, o tipo de livro que despertava as risadinhas constrangidas da gurizada devido a suas cenas de sexo não necessariamente explícitas, mas diretas. O cortiço é um clássico brasileiro e consta no edital não apenas em sua versão origina como em uma versão em quadrinhos. Não vi a versão em HQ, não posso, assim, deduzir que tais cenas foram cortadas da adaptação. Mas o livro original já tem sua cota de cenas instigantes para a imaginação juvenil. Um guri de 17 anos vai achar muito interessante uma cena de lesbianismo pegado descrita no livro? Sei lá, hoje tenho certeza de que o pessoal já sabe mais coisa do que nós daquela época, mas ainda assim é o papel do professor também baixar a bola dos hormônios juvenis e apresentar o contexto, o propósito, o sentido.
Um dos veículos que vi repercutir a notícia, por exemplo, a Gazeta do Povo de Curitiba, cuja redação parece ter há algum tempo abdicado de qualquer manual de procedimentos jornalísticos, publicou uma manchete caça-clique dizendo que o livro tinha “cenas de sexo explícito”. Como fica, então, outro livro ainda constante da lista do PNLD e também um clássico nacional, Capitães de Areia, de Jorge Amado? Ao contrário do livro de Jeferson, que usa as palavras mais diretamente, Amado disfarça mais de uma vez o polêmico “pau” como “sexo”, à moda do tempo em que o romance foi publicado, mas as cenas são mais gráficas do que qualquer uma descrita no livro de Jeferson (em última análise, uma história mais preocupada com uma investigação interna de seus personagens do que na descrição de ações).
Com isso, não estou dizendo que qualquer um desses livros anteriormente citados deveria ser proibido ou retirado da lista (ou muitos outros, a coluna poderia ser, aliás, só sobre isso). Apenas penso que O Avesso da Pele está sendo usado para levantar uma discussão algo sensacionalista que claramente parece ter outro tipo de motivação.
Falando nisso, deixo pra vocês a dica de que amanhã, dia 8 de março, a partir das 17h30min, será feita, como parte do Festival Rastros do Verão, uma leitura coletiva do livro O Avesso da Pele na Livraria Clareira (Rua Henrique Dias, 111, Bom Fim), como um ato de desagravo. Quem quiser participar é só chegar na livraria e ler.
PS: SESC
Este texto já estava pronto quando foi divulgada também outra instância preocupante de ataque à literatura nacional sob a desculpa do conservadorismo moral. O famoso e já existente há 20 anos Prêmio SESC de literatura foi meio que interrompido e teve seu criador e responsável demitido aparentemente porque, durante uma solenidade de celebração do prêmio, com a presença de gente graúda da direção do SESC, foi lido o trecho inicial de Outono de Carne Estranha, de Airton Souza, que tem na primeira página a descrição bastante direta de uma relação homossexual no meio do garimpo de Serra Pelada. Aparentemente, para a direção da entidade, pelada no livro só a serra, não os protagonistas (é uma piada, estou rindo de nervoso)
Depois disso, o serviço decidiu criar um grupo interno para ter mais um filtro de “avaliação” dos competidores e demitiu Henrique Rodrigues, o grande responsável por levar adiante o prêmio que já revelou nomes como Luísa Geisler, Débora Ferraz e Tobias Carvalho. A criação desse novo “filtro de censura” levou a parceira de longa data do prêmio também, a editora Record, a pular fora da jogada, numa iniciativa que eu considero elogiável vinda de uma editora que ainda mantém Olavo de Carvalho em seu catálogo. Elogios a quem se deve.
Não há neste caso sequer a desculpa “das nossas crianças”, uma vez que o próprio propósito do prêmio era reconhecer novos talentos dispostos a uma nova radicalidade na confecção de seus trabalhos. Imagino que vocês saibam disso tão bem quanto eu, mas o momento é de manutenção renhida de um obscurantismo filisteu disposto a manter na mídia discussões movidas pelo mais tacanho conservadorismo.
Fiquemos atentos.
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Foto da Capa: Divulgação