Na primeira fase da trajetória profissional de Oscar Niemeyer (1907-2012), o conjunto de edificações da Pampulha é um marco. Merecidamente recebeu da UNESCO a titulação de Patrimônio Cultural da Humanidade. Naquele conjunto se destaca a Igreja dedicada a São Francisco de Assis, cujo orago remete a uma das ordens terceiras mais prestigiadas do ciclo do ouro e dos diamantes do século XVIII, do chamado “barroco mineiro”. Nela o reconhecido arquiteto carioca explora a estrutura para definir as formas do templo da Pampulha.
Niemeyer escreveu um breve texto publicado sob o título “A forma na arquitetura”, editado em 2005, pela Revan Editora, no Rio de Janeiro, e pela Edições 70, de Lisboa, em 2014. Nele o arquiteto lembra que “A forma plástica evoluiu na arquitetura em função das novas técnicas e dos novos materiais que lhe dão aspectos diferentes e inovadores. (…) lá pelo ano de 36, quando iniciei minha vida de arquiteto (…). Não podia compreender como, na época do concreto armado que tudo oferecia, a arquitetura (…) permanecesse com um vocabulário frio e repetido, incapaz de exprimir aquele sistema em toda a sua grandeza e plenitude” (NIEMEYER, 2014, p. 16, 18 e 19).
No mesmo texto, Niemeyer diz então a atitude que tomou: “Voltei-me contra o funcionalismo, desejoso de vê-la integrada na técnica que surgira e juntas caminhando pelo campo de beleza e da poesia. E essa ideia passou a dominar-me, como uma deliberação interior irreprimível, decorrente talvez de antigas lembranças, das igrejas de Minas Gerais, das mulheres belas e sensuais que passam pela vida, das montanhas recortadas esculturais e inesquecíveis do meu país”. Cita Le Corbusier: “Oscar, você tem as montanhas do Rio dentro dos olhos” (NIEMEYER, idem, p. 21).
O bairro da Pampulha foi inaugurado por Juscelino Kubitscheck (1902-1976), em 15 de maio de 1943. Naquela data a igreja estava em obras. Fica pronta em 1945. Em 1946, o arcebispo de Belo Horizonte Dom Antônio dos Santos Cabral (1884-1967) se nega a consagrá-la, argumentando motivos jurídicos e de ordem religiosa. Na oportunidade, para defender sua postura, compara uma igreja moderna construída na França com a igreja da Pampulha: “Enquanto a primeira se atira ao alto,
procurando a luz, bem elevando o símbolo sacrossanto da fé (referindo-se a francesa), a outra parece querer perfurar o solo, em busca das trevas …” (FABRIS, 2000, p. 187). Inicia-se uma discussão que se transfere do âmbito cultural para o dos costumes. Uma longa história se arrastou até a consagração do templo, em 11 de abril de 1959, em solenidade conduzida pelo arcebispo-coadjutor da cidade, Dom João Resende Costa (1910-2007), que justificou a postura de Dom Cabral, lembrando que a Igreja, mensageira da eternidade, “não costuma a ter pressa em aceitar as coisas de vanguarda” (FABRIS, idem, p. 193).
De fato, deve ter incomodado a forma do templo, naqueles tempos, comparada pelo mesmo arcebispo a um hangar, composta de maneira construtivista pela união através de uma marquise com a forma da torre, que lhe faz contraponto. Não se dava conta ou não sabia que a forma do templo, se por um lado lembrava estruturas dos engenheiros Eugène Freyssinet (1879-1962) e Robert Maillart (1872-1940), lembrava também as silhuetas das inéditas igrejas franciscanas nordestinas da região de Pernambuco e Paraíba, do barroco litorâneo. Para a maioria das pessoas que conhecem a Igreja de Oscar, o barroco limita-se às formas externas. Vai muito além.
Das igrejas franciscanas nordestinas, Niemeyer também absorve a intenção do adro antecedendo-as, com um cruzeiro, tal qual as oitocentistas. O painel de azulejos na parte posterior da igreja, elaborado em linguagem moderna por Cândido Portinari (1903-1962), faz alusão, em especial aos de azulejos historiados dos claustros dos conventos franciscanos. Aliás, único no interior do Brasil. Talvez inspirado na intenção de “mar doméstico” que se constituiu com a criação artificial da Lagoa da Pampulha.
A planta escolhida pelo arquiteto carioca, de nave única, com sacristia ladeando a capela-mor, lembra as primitivas igrejas jesuíticas, as primeiras implantadas no Brasil, após a chegada da Companhia de Jesus, em 1549. Aliás, esta foi uma das plantas predominantes na arquitetura religiosa do ciclo de mineração, em Minas Gerais, junto com as plantas de nave única com corredores laterais. Logo na entrada do templo, Niemeyer cria um biombo para envolver o batistério, eliminando a compartimentação normalmente existente nas igrejas tradicionais. Na capela-mor, diferenciada pela disposição das cascas de concreto que dão forma ao edifício, a pintura de São Francisco de Assis, do mesmo Portinari, substitui os tradicionais e escultóricos retábulos barrocos. São afirmações modernas para expressar de uma nova maneira as soluções tradicionais.
Se há todos estes antecedentes, relacionados com o nosso barroco religioso, mais ainda encontramos na igrejinha da Pampulha. As barras que protegem os passos colocados nas paredes laterais da nave, ainda que baixas, aludem ao uso de azulejos nas igrejas franciscanas do litoral, do Nordeste ao Rio de Janeiro. Há outros referenciais na arquitetura promovida pelas ordens terceiras mineiras de São Francisco e de Nossa Senhora do Carmo. Na ideia inicial, Niemeyer concebe dois púlpitos, um do lado da epístola e outro do lado do evangelho, como realizou Antônio Francisco Lisboa (1738?-1814), o Aleijadinho, na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, de Ouro Preto. Do grande artista barroco mineiro veio também a forma sinuosa do coro do templo da Pampulha, inspirado no da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, de Sabará.
Como dizia ironicamente Apparício Torelly (1895-1971), que assinava como Aporelly, e que se auto intitulou Barão de Itararé, “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”. Em muitas oportunidades, Oscar fez discursos dando a entender que arquitetura é apenas criatividade. Mais do que isso, arquitetura para ser produzida, exige cultura arquitetônica. Oscar Niemeyer demonstra na Igreja de São Francisco de Assis um vasto conhecimento da arquitetura brasileira produzida nos séculos anteriores e com sua criatividade, promove uma das mais comoventes homenagens ao santo italiano. Daí o reconhecimento da UNESCO.
Bibliografia:
NIEMEYER, Oscar. A forma na arquitetura. Lisboa: Edições 70, 2014.
FABRIS, Annateresa. Fragmentos urbanos: representações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 2000.