Primeiro Ato
Entre os anos de 1907 e 1908, o artista austríaco Gustav Klimt pintou a obra conhecida como “O Beijo”. O casal que parece flutuar sobre flores douradas remete à sensualidade e ao erotismo. Um homem e uma mulher abraçados, com ele inclinado a beijá-la. A obra ficou mundialmente conhecida quando, após a expiração dos direitos autorais, passou a fazer parte da cultura de massa. A reprodução da tela está em gravuras, almofadas, caixas, objetos decorativos. A imagem é prioritariamente associada ao amor, mas não é unanimidade. Alguns críticos de arte não veem a pintura como uma representação romântica. Isso porque apenas o homem está beijando a mulher, não parece haver um reciprocidade. Há uma tese de que a pintura seria um registro de um ato de dominação masculina. Há ainda muitas pessoas que veem pesar e sofrimento.
Segundo Ato
Fevereiro de 2023. No subúrbio de uma cidade na Índia acontece um encontro entre 120 jovens e o líder espiritual Dalai Lama. Um menino se aproxima do líder religioso e pede para abraçá-lo. Dalai Lama aponta para a própria bochecha e diz “primeiro aqui”. O garoto beija o rosto do líder e só então o abraça. Dalai Lama prossegue dizendo “aqui também”. O que se vê a seguir é um beijo na boca entre Dalai Lama e o menino, seguido de uma frase: “Chupe minha língua”. Dalai coloca a língua para fora. O garoto também. Os dois se afastam. Algumas pessoas que estavam no encontro sorriem. Quando foi divulgado, o vídeo gerou críticas generalizadas. Dalai Lama se desculpou por meio de seus representantes e disse que “sentia muito pela mágoa que suas palavras possam ter causado à família e ao menino”.
Terceiro Ato
Domingo passado, 20 de agosto. Final do campeonato mundial de futebol feminino. Momento de euforia e celebração com a vitória da Espanha. Nos festejos do título e pouco antes da entrega do troféu e das medalhas, o presidente da Federação Espanhola de Futebol segura a cabeça da jogadora Jenni Hermoso e lhe dá um beijo na boca.
O gesto de Luis Rubiales foi fortemente criticado nas redes sociais e também por alguns comentaristas de futebol. Por outro lado, houve quem classificou como algo insignificante. Rubiales declarou que foi um ato de carinho. A jogadora foi dúbia nos comentários. Hora disse que não gostou, depois que foi natural. O fato é que a imagem rodou o mundo e entre críticas e justificativas ofuscou, de certa forma, o brilho da vitória da seleção Espanhola.
Três atos. Três beijos. Três intenções. Três interpretações.
Não se sabe ao certo a data do primeiro beijo na humanidade. Não há registros nem na pré-história, nem na civilização egípcia, pelo menos que tenham sido eternizados nos desenhos nas cavernas ou nas expressões artísticas.
A mais antiga referência vem dos hindus. Há um registro de aproximadamente 1200 a.C., no livro védico Satapatha sobre um encostar de lábios. Algum tempo depois, outro texto indiano, o Kama Sutra, apresentou uma versão mais detalhada, digamos assim, sobre o assunto.
A disseminação do ato de beijar é atribuída a Alexandre, o Grande. Ele e seus soldados, ao deixarem a Índia, entre 327 e 325 a.C., levaram a cultura do beijo e espalharam o hábito por onde passavam, entre guerras e conquistas.
Existem vários outros registros históricos sobre o beijo. Sobre a forma do beijo, o objetivo ao beijar e como era visto no contexto no qual estava inserido.
Na Idade Média, por exemplo, beijar era ilícito e perigoso, pois, segundo a igreja, propagava as doenças do corpo e da alma.
Na Antiguidade, entre as populações pré-colombianas encostar os lábios era um gesto quase suicida. Eles acreditavam que a alma poderia sair pela boca e ir para a outra pessoa.
Entre os índios brasileiros, o beijo era ignorado até que algumas tribos tiveram contato com outras culturas.
O significado e a aceitação do beijo na boca variam significativamente, ainda hoje, entre diferentes culturas. Em algumas sociedades ocidentais, o beijo na boca é frequentemente associado à intimidade romântica e afetiva entre casais. No entanto, em outras partes do mundo, o contato entre as bocas pode ter conotações diferentes. O beijo muitas vezes fala mais sobre quem beija do que sobre o indivíduo beijado.
Voltemos então aos nossos personagens dos três atos:
O beijo romântico de Klint deixa margem à interpretações pela forma como o artista desenhou os corpos. Há indícios de dominação.
O beijo saudação de Dalai Lama causa repulsa por ser entre um adulto e uma criança e ainda pela prevalência de poder da “Sua Santidade” sobre um estudante.
O beijo celebração de Rubiales é criticado pela posição hierárquica entre os envolvidos. Ele ocupa um alto cargo da Federação, ela é uma jogadora.
Em todas as situações fica a ideia de um “beijo roubado”. Aliás, essa definição que nos foi incutida como algo maroto e com um “quê” de romantismo deve ser revista. Beijar alguém sem o devido consentimento é invasão de privacidade e pode ser considerada uma forma de violência. Esse consentimento, mútuo e explícito, é fundamental em qualquer interação física ou emocional. Ou pelo menos assim deveria ser.
Sim é sim, não é não. Beijo não é roubado. Beijo é dado.