A inércia é um conceito da física que nos fala da propriedade de os corpos resistirem a mudanças, mas pode chamá-la também de força de inatividade. E não são só os corpos que resistem.
No cérebro, diz a neurociência, é a amídala cerebral, um conjunto de neurônios amigados em forma de amêndoa, a responsável por calibrar o medo. É ali que se instala a vontade de ficar no conforto da inatividade, de resistir a voos cegos, a mergulhos em águas turvas.
As águas lamacentas do lago Guaíba, em Porto Alegre, começaram, lentamente, a avançar pelos bairros próximos das suas margens, como o Menino Deus. As mesmas águas que já haviam invadido todas as regiões do Estado, sugando estradas, pontes, vidas e almas.
“Somos um país abençoado, não temos terremotos, furacões”, é o que todos ouvimos desde os tempos antigos. E por que, então, acharíamos que algo havia mudado, que as primeiras águas que começaram a subir lentamente pelas calçadas não seriam apenas iguais àquelas da infância?
Eram os anos 70, e as ruas do Menino Deus frequentemente eram tomadas pelas águas quando ocorria uma chuvarada. E, se fosse no verão, estavam garantidos, para a gurizada, o banho de chuva e a piscina natural. Depois de meses com canos de concreto enormes, maiores do que eu à época, atravancando as ruas, eles entraram para dentro da terra, feito tatus, e lá se foram os alagamentos. E a diversão.
As crianças têm essa vantagem. Como um bebê num berço que alegra-se com pouco que lhe dão. É, afinal, um total incapaz, é a nossa desproteção escancarada sem consciência de si.
Dias atrás, meus irmãos e eu, nos mobilizamos para resgatar a nossa mãe (foto) do seu apartamento no Menino Deus, num prédio já isolado, sem luz e sem água. Aos 95 anos, a sua mobilidade está comprometida, e a compreensão também. Mas a amídala ainda funciona.
Ela estava muito perturbada dentro do bote salva-vidas, navegando pelas águas barrentas de uma rua tão familiar, sem entender o que era aquilo tudo.
Quem eram aqueles homens que invadiram a sua casa? Por que estava sendo levada? Para onde? O que, afinal, está acontecendo? “Não estou entendendo nada, meu filho, me explica”, insistia, segurando a minha mão com força, depois de eu repetir a resposta pela décima vez.
A antiga professora de Geografia da Escola Estadual Infante Dom Henrique, a poucas quadras dali, em outros tempos estaria ela própria explicando aos seus alunos todo aquele cenário.
Aquela velhinha, ali no bote, que viveu desde os seus primeiros anos de vida entre casas de familiares e internatos, a cada vez que sua mãe era internada num manicômio por depressão. Que fora alfabetizada primeiro em alemão, em escolas onde Hitler estava nas paredes, virou uma mulher independente, quando boa parte delas ainda eram ‘do lar’.
A mãe – pioneira – que fez seus filhos homens crescerem entendendo a igualdade de gênero naturalmente. A mulher que discutia política, filosofia, arte, livros. Que falava alemão, inglês e arranhava no francês, agora está apenas flanando pelas águas, negociando com o tempo, pouco tempo.
No fundo, ela sabe. A nossa fragilidade nunca será vencida. E acabaremos voltando para o mesmo lugar de onde partimos, frágeis num bote. Ou num berço eterno.
Foto: Acervo de família.
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