Ao pensar e repensar a cidade sob o ponto de vista da qualidade de vida – que traduzo em saneamento básico, saúde, educação, segurança, limpeza, inclusão, acolhimento, acessibilidade, respeito e beleza – minha inquietude só faz crescer. O que vejo pelas ruas é desolador. A miséria estampada em rostos que vasculham lixos, crianças jogadas no chão, mães pedindo comida, jovens fazendo malabarismos por alguns trocados, preconceito e a violência que explode inesperadamente. A inquietude aumenta quando ouço os candidatos e suas propostas banais recheadas de um desconhecimento absurdo da realidade, em tom de salvadores da humanidade. Seria cômico, se não fosse trágico. É grande o descontrole e a desumanização, o que se soma ao evidente descaso dos governos.
Basta prestar atenção no que acontece nas periferias das cidades, dominadas pelo tráfico de drogas, pelas facções e pela violência policial. Quem cuida da população? Até porque matar está virando hábito. Poucos entendem das graves questões sociais enfrentadas pela população que vive nesses locais. Mas o Grito dos Excluídos foi explícito: terra, teto, trabalho e democracia
Basta prestar atenção na disputa dos motoristas por vagas para estacionar. Se não encontram, colocam na calçada, sem o mínimo respeito pelos pedestres – mães com filhos nos carrinhos, pessoas em cadeira de rodas, cegos, idosos com dificuldade de andar, pessoas com bengala ou muletas. Pelo que sei, calçadas são para pedestres. Apenas!
Basta prestar atenção nas sinaleiras – o motorista que ultrapassa com sinal fechado, assim como o pedestre apressado que atravessa a rua perigosamente. Pelo que sei, sinaleiras existem para orientar as pessoas. No sinal vermelho, pare. No verde, pode passar. Quem se importa verdadeiramente?
Basta prestar atenção no transporte público. Quando o ônibus para, é um entrar desvairado como se fossem perder a hora. Ninguém olha para ninguém. Dane-se quem tem uma dificuldade.
Basta prestar atenção nos parques e praças depois de uma festa popular. A sujeira que fica é chocante.
Os espaços públicos são nossos. Também somos responsáveis. Precisamos ocupar e cuidar. Antes que os governos privatizem tudo, cerquem e cobrem a entrada, como já está sendo proposto pelos atuais ocupantes do poder.
Basta prestar atenção nos “mastodontes” que estão sendo construídos, revestidos de vidros espelhados, sem respeitar o entorno e a natureza, resultado de negócios entre empresários sagazes e governos que vendem a alma ao dinheiro fácil. Sem fiscalização.
Quem para e pensa que a humanização da cidade pode começar por nós? Transformá-la em espaço criativo, de colaboração, acolhimento, celebração da arte de bem viver também é tarefa nossa.
É evidente que as cidades são de quem nelas vive
As cidades são cheias de conflitos criados pelo poder público, pelo poder econômico, pela ganância humana e pelo tratamento que damos aos lugares que ocupamos, muitas vezes desleixado, arbitrário, desordenado e sem critérios. É bom ter consciência de que a responsabilidade é coletiva. É claro que o exemplo deveria partir dos governos, mas a maioria assume sem projetos viáveis, ignora o que é público e só se queixa da falta de verba quando assume o trono. Muitos empresários, por sua vez, só visam o lucro fácil. E assim acabam olhando para o próprio umbigo, exercendo o poder em benefício de muito poucos.
É evidente que os espaços precisam ser valorizados, requalificados e que é fundamental multiplicar essa discussão, difundindo a ideia de que para viver na cidade não precisamos de prédios enormes, grudados uns nos outros, que desrespeitam as regras mínimas do meio ambiente, da circulação do ar e da convivência saudável.
É evidente que as cidades podem crescer sem destruir seus centros históricos, sua cultura e sua memória, sem se tornar impermeáveis, cinzas e insensíveis, sem abrir mão da inclusão, da brisa, da paisagem arborizada, dos horizontes amplos, das cores, da humanização.
É evidente que os bairros pobres, que concentram boa parte da população que trabalha, muitas vezes, em condições precárias, precisam ser olhados com atenção. Precisam de saneamento básico. Precisam de condições mínimas para garantir a dignidade de quem ali vive.
É evidente que precisamos de planejamento efetivo, do uso honesto das verbas públicas e de maior comprometimento das autoridades e do poder econômico. Mais agilidade e menos burocracia. Mais criação e menos ambição.
É evidente que a arte pode minimizar o impacto provocado pela dura paisagem concreta. E lembro aqui o que disse meu amigo e editor Vitor Mesquita, da Pubblicato Editora, idealizador de um projeto chamado URBE: “Cidade criativa é cidade compartilhada de dentro para fora. Fazer parte dessa transformação e experimentação é o que está no atual cotidiano das pessoas. A palavra é pertencimento e o verbo é compartilhar”.