Em setembro de 2021, eu estava me sentindo doente, doente da alma, doente de ficar presa no isolamento, doente de ficar sem movimento, liberdade de ir e vir… a pandemia nos adoeceu, nos entristeceu a alma com tantas mortes, tanta angústia, debates negacionistas… a pandemia marcou o Brasil. Com a vacinação em andamento já na segunda dose, eu só pensava: “Eu preciso do movimento das ruas, do sol forte e do burburinho de um Brasil que pulsa mesmo diante de todas as mazelas e dores”. Eu estava precisando não do Brasil ocidental, enquadrado pela colonização europeia onde vivo no Sul. Mas do Brasil da correnteza oposta: o Brasil das encruzilhadas como nomeiam Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino em seu livro: “A Ciência encantada das Macumbas”.
“As encruzilhadas são lugares de encantamento para todos os povos”, mas aqui no Brasil está encruzilhada é o que nos define no sincretismo católico, na capoeira, nos múltiplos tipos de sambas, no encruzamento do morro com a cidade, das favelas com as zonas ricas, no saber popular com a ciência, no encontro das etnias e de seus saberes. O Brasil das macumbas. O Brasil é a encruzilhada da diversidade. Mas está em crise de negação desta potência que é sua essência e potência.
Trago aqui a nota introdutória do livro:
“Macumbeiro: definição de caráter brincante e político, que subverte sentidos preconceituosos atribuídos de todos os lados ao termo repudiado e admite impurezas, contradições e rasuras como fundantes de maneira encantada de se encarar e ler o mundo no alargamento de gramáticas. O macumbeiro reconhece a plenitude da beleza, da sofisticação e da alteridade entre as gentes.
A expressão macumba vem, muito provavelmente, do quicongo Kumba: feiticeiro (o prefixo “ma”, no quicongo, de forma plural). Kumba também designa os encantadores das palavras e poetas.
Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto, em meio às doenças geradas pela retidão castradora do mundo como experiência singular da morte.”
A partir das noções de ancestralidade e de encantamento, praticamos uma dobra nas limitações intransigentes cultuadas pela normatividade ocidental. Aqui pontuo meu silêncio profundo quando saio das páginas do livro sensível de Simas e Rufino, e vou para o Twitter onde, sem dar nomes, expoentes políticos atacam esta diversidade religiosa qualificando como demoníaca… Vídeos agressivos de uma mulher que não irei nominar se afirmando a voz do espírito santo em batalha contra os demônios.
O nome disto é intolerância religiosa, racismo religioso, enfrentamentos que têm aumentado no Brasil junto com o crescimento de um Brasil de extrema direita e fundamentalista.
O assunto é tão sério e chocante que está em pautas aprofundadas em todos os maiores veículos de imprensa do Brasil. Agosto é um mês desafiador para os fiéis de religiões de matriz africana. É quando ocorre o sabejé, ritual candomblecista no qual mulheres saem às ruas levando na cabeça balaios com as chamadas “flores de Azoany ou Omolu ou Obaluaê”, pipocas jogadas nas pessoas como sinal de purificação, muito parecido com o ritual feito com um dos candidatos à presidência. O ritual é gratuito, a contribuição de quem quiser doar é voluntária, e o dinheiro arrecadado é destinado para a festa dedicada aos orixás Azoany, Omulu e Obaluê. “Sempre houve uma tentativa de ‘demonização’ dos rituais, mas foi a partir de 2017 que começamos a receber denúncias de grupos majoritariamente femininos com relatos de ameaças de agressão física e estupro contra mulheres”, explica Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Amerindia (AFA).
Reportagem da Revista Piauí mostrou que, em 2021, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, registrou 581 denúncias de ataques à liberdade religiosa – um aumento de 140% em relação a 2020, quando ocorreram 242. Na contabilidade das vítimas de agressão no ano passado, a umbanda aparece em primeiro lugar, com 65 denúncias, seguida do candomblé, com 58.
Em períodos eleitorais, a situação fica ainda mais perigosa, avalia Monteiro, da AFA. “É preciso ter um cuidado muito grande neste momento eleitoral. A gente nota que sempre em ano eleitoral grupos neopentecostais ocupam mais as ruas, com informes e panfletos [de seus candidatos], o que faz com que a temperatura nas ruas acirre”, completa Monteiro, que se diz preocupado com as ameaças sofridas vindas de grupos evangélicos. O livro Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?, escrito pelo bispo Edir Macedo e publicado em 1997, é uma das obras evangélicas mais vendidas na história – foram mais de 3 milhões de cópias desde o lançamento. Em 2005, a impressão da obra foi suspensa pela juíza Nair Cristina de Castro, da 4ª Vara da Justiça Federal da Bahia, por encontrar ali incitação à intolerância religiosa. No entanto, um ano após a proibição, o veto caiu, e a Unipro Editora (vinculada a Igreja Universal, da qual o bispo é fundador) segue até hoje editando o livro.
Elika Takimoto, física, doutora em Filosofia e Mestre em História fez um vídeo em seu instagram explicando de maneira elegante e sensível o acontecimento liderado pela 1ª dama do país, que está causando inclusive problemas diplomáticos ao demonstrar para o mundo que aqui a liberdade não é bem-vinda.
E é neste Brasil da encruzilhas que nos encanta e nos adoece que teremos que descobrir como ser realmente um país diverso, livre e plural. Temos um longo caminho a andar. Você não precisa gostar da macumba, ela não está na sua bíblia… assim como o Alcorão ou a Torá. Também não estão. Mas você e todos temos o dever de respeitar culturas e expressões diversas sem incitar violência, desqualificação e visão única.