Nasci em 1980. E quem, como eu, atravessou a infância naquela década deve guardar lembranças difusas, mas marcantes, de um tempo em transformação — mudanças que só mais tarde, já despidos da ingenuidade da infância, conseguimos de fato compreender.
Naqueles dias, eu não sabia que vivia sob uma Ditadura Militar. Meus pais, assim como as pessoas que nos cercavam, não participavam da vida política. Era um assunto ausente dos almoços de domingo, das conversas entre vizinhos, das histórias antes de dormir. O que eu via era meu pai, operário em uma fábrica de calçados, envolvido em greves e paralisações. Novo Hamburgo ainda ostentava o título de Capital Nacional do Calçado — hoje, memória viva apenas entre os nostálgicos.
Lembro da frustração geral com a morte de Tancredo Neves, dos pacotes econômicos incompreensíveis, da figura constante de José Sarney na televisão, das novelas — especialmente Vale Tudo, tão atual em sua reprise quanto na estreia —, dos programas de auditório, do mundo filtrado pela tela da TV, quase sempre indecifrável para minha mente infantil.
Enquanto para mim aqueles anos eram o apogeu da inocência, para outros representavam uma esperança urgente: a redemocratização, o retorno do voto direto, a promessa de um país sem censura. Mas os anos 1980 estavam longe de ser um tempo de euforia plena. Ainda menina, aprendi a temer uma palavra que piscava nas reportagens com tom grave: AIDS. Não compreendia muito, apenas sentia um nó no peito sempre que ela surgia — e, junto dela, números de doentes, mortos, pavor.
Com o tempo, tornou-se impossível ignorar o peso do preconceito. A doença, que no início foi atribuída exclusivamente a homossexuais, logo afetaria também homens heterossexuais, mulheres, crianças. Ninguém parecia saber ao certo como se dava a transmissão, e o medo gerava abandono: pessoas infectadas eram deixadas sozinhas em hospitais, privadas de afeto e dignidade. O teste de detecção só chegou ao Brasil em 1985, tarde demais para muitos.
Na década de 1990, o medo da AIDS ainda era forte. A morte de ídolos como Cazuza, em 1990, escancarou a gravidade da doença. Sua imagem, marcada pela perda de peso e fragilidade, chocou o país. Em 1991, a revelação tardia de que Freddie Mercury tinha HIV, seguida de sua morte no dia seguinte, mostrou ao mundo que nem mesmo os maiores estavam a salvo. Renato Russo, que morreu em 1996, foi mais um nome de peso levado pela epidemia. A comoção causada por essas perdas ajudou a tirar a AIDS da sombra, mas o preconceito persistia.
Retomo essa memória dolorosa para falar de duas obras que, recentemente, me atravessaram. A primeira é a supersérie Os Dias Eram Assim, disponível na Globoplay. Transmitida originalmente em 2017, a trama percorre os anos de chumbo da ditadura a partir da década de 1970 e chega à abertura política dos anos 1980. Ali, a liberdade sexual é celebrada enquanto a sombra da AIDS começa a se projetar sobre os corpos. Na pele da personagem Nanda, vivida por Júlia Dalavia, vivenciamos o impacto da doença, não apenas na pessoa que a carrega, mas em todos ao seu redor.
A outra obra é o romance Gostaria que você estivesse aqui, de Fernando Scheller, publicado em 2021 pela Editora HarperCollins. César, protagonista da história, é um produtor musical talentoso e carismático, cuja vida toma um rumo inesperado ao receber o diagnóstico de AIDS. A partir desse momento, tudo ao seu redor começa a ruir e, aos poucos, a se reconstruir sob novas bases. Selma, sua mãe, tenta sustentar o próprio mundo enquanto encara, simultaneamente, o fim de um casamento e a fragilidade crescente do filho. Já Inácio, tocado pela amizade com César, permanece ao seu lado até os últimos dias, partilhando silêncios, perdas e descobertas.
Ambas as obras iluminam um tempo em que amar, criar e resistir eram atos perigosos, mas imprescindíveis. “O meu prazer agora é risco”, cantava Cazuza em Ideologia, revelando a tensão vital entre desejo e ameaça que marcou os anos da epidemia de AIDS. Ao revisitar histórias — reais ou ficcionais —, compreendemos que não fomos apenas atravessados por aquele período; fomos moldados por ele. As perdas, os silêncios, os medos e os afetos daquele tempo não se dissiparam: permanecem como cicatrizes abertas, lembranças vívidas que ainda nos comovem e convocam.
Hoje, ao olhar para trás, percebo que muito do que vivi — e do que o país viveu — não terminou. Apenas se transformou. Ainda há preconceito, ainda há desinformação, ainda há luta. Mas há também memória, arte e afeto, e é com eles que seguimos em frente. Porque lembrar é, também, um modo de resistir. E de continuar vivos.
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