Há mais de dez anos eu comecei a sentir dores na coluna e descobri que tinha duas hérnias de disco, parei de fazer exercícios de impacto, reforcei a musculatura abdominal e as dores passaram. Depois de vários anos sem fazer exames na coluna, esta semana resolvi procurar um médico para fazer uma revisão. Mostrei os exames do passado, ele me examinou e perguntou por que eu fui fazer esta consulta se não estava com dores. Expliquei que vou fazer uma viagem longa de carro no mês de janeiro e gostaria de realizar uma revisão na coluna. Mas o que a minha coluna tem a ver com “o Brasil salvará o Mundo”? Agora você vai entender.
O médico, muito simpático, me alertou que será muito perigoso viajar de carro no mês de janeiro e me aconselhou comprar passagens aéreas. Imaginei que ele estava se referindo aos perigos de acidentes nas estradas, mas não! Me perguntou se eu não sabia o que está acontecendo? Logo iniciou uma longa e detalhada explicação afirmando que em janeiro de 2023 os tanques do exército vão tomar as ruas e estradas do país e teremos muitos conflitos.
Segundo o doutor, os super ricos querem dominar o mundo e estão usando a esquerda para implantar as suas propostas. A Europa já está dominada e os EUA, que era a maior democracia do mundo, já está se tornando comunista. Eles vão utilizar vacinas para matar os idosos e vão acabar com a liberdade de expressão. Querem permitir o aborto, alegando que as mulheres têm direito sobre o corpo delas, mas esquecem que uma mulher grávida tem outra vida dentro dela. Assim, uma grávida de oito meses poderá matar o seu filho e ninguém terá como impedi-la. E o pai da criança, como fica? Ele não tem direito sobre o filho?
Eu olhava para o Doutor sem saber o que dizer e achei mais adequado continuar apenas ouvindo. Ele me explicava esta teoria como se estivesse falando da sua especialidade e com muita convicção. Salientou que o problema não é a política no Brasil, mas sim esta grande articulação mundial, e depois sorriu aliviado quando disse: “O Brasil salvará o mundo, nós vamos resistir a esta dominação e seremos o exemplo para os demais países. Quem diria, hein? Seremos admirados pelo restante do mundo!”
A conversa sobre esta teoria conspiratória ocupou uns 80% do tempo da consulta e depois de ouvir tantas explicações, resolvi perguntar: “Doutor, e sobre a minha coluna, devo fazer algum exame?”, ele logo respondeu: “Nada! Apenas tenha cuidado, lembre de a cada hora de viagem parar e fazer alongamentos”. Agradeci o conselho e nos despedimos.
Na época da guerra fria os EUA e a União Soviética financiavam golpes, guerrilhas e derrubavam governos de outros países. Mais recentemente a direita e a esquerda acusam a grande mídia de manipulação. Temos ainda novas estratégias de manipulação como a da Cambridge Analytica, que manipulou os eleitores nas eleições do BREXIT, do Trump e muitas outras. Portanto, eu acredito sim que os poderosos conspiram e interferem na política do seu e na de outros países, mas esta teoria conspiratória do doutor me pareceu fantasiosa demais! Quanto ao doutor, acredito que seja um caso isolado, pois conheço muitos outros médicos que possuem diferentes ideologias, mas nada comparado com este posicionamento.
Tentando entender de onde vêm estas ideias, descobri que 80% dos brasileiros se informam pelas redes sociais, sendo o WhatsApp a principal fonte. Teorias de conspiração como esta se originam de fake News e circulam principalmente entre pessoas com mais de 40 anos, com muitos anos de estudo e boa condição financeira. Mentiras circulam entre simpatizantes de esquerda, de centro e de direita. Como podemos nos prevenir? Embora já sejam conhecidas, vale relembrar as seguintes dicas: verifique a fonte, a autoria ou a foto e depois a jogue no Google, Bing ou qualquer outro buscador. Pergunte para quem lhe enviou, quem passou esta informação para ela e se ela verificou a veracidade da informação? Leia a informação até o final e não apenas o título e preste atenção na data na informação e da URL. Desconfie de mensagem do tipo: “notícia urgente… a verdade sobre… esta você não esperava… uma autoridade que deu uma declaração polêmica…. isto a mídia tradicional não informa…. por favor repasse…”. Na dúvida, consulte os sites de “fact checking”, como por exemplo o projeto Truco da Agência Pública, para saber a veracidade da informação. Tudo isto dá um pouco de trabalho, mas é a forma de nos reeducarmos e contribuirmos para que outras pessoas não continuem repassando e acreditando em teorias conspiratórias como a relatada pelo médico que consultei.
Referências:
- Livro “True Enough – Learning to Live in a Post-Fact Society” – Farhad Manjoo (disponível na Amazon)
- Projeto Truco da Agência Pública
- Sete passos para identificar notícias falsas. BBC News Brasil