Nos dias 22 e 23 de julho, a internet foi inundada por manchetes dizendo que o Brasil será inabitável em 2070, e não foram só sites sensacionalistas, veja quem noticiou: Exame – “Estudo da Nasa aponta que Brasil pode ficar ‘inabitável’ em 50 anos”; Correio Braziliense – “Brasil pode ficar inabitável em 50 anos, diz relatório da Nasa”; Forbes Brasil – “Brasil será inabitável em 50 anos, segundo a Nasa”; Jovem Pan News – “Estudo da Nasa aponta que o Brasil pode ficar inabitável em 2070”; Record News – “Cientistas da Nasa afirmam que o Brasil pode ficar inabitável”, entre outros. A notícia leva o leitor a pensar que a NASA divulgou recentemente um relatório com tais informações. Porém, esta não é a verdade. Existe um pouco de verdade e um pouco de sensacionalismo nestas manchetes. Vamos analisar de onde vieram estas informações e o que tem de verdade.
Qual a fonte da informação? Esta deveria ser a pergunta que um veículo de informação sério deveria se fazer. Ao buscar a fonte descobriria que, em primeiro lugar, não existe relatório da NASA. Em segundo, a fonte que originou essa informação é um artigo publicado em 2020 na revista Science Advance, ou seja, a notícia já tem quatro anos. Em terceiro lugar, que os autores do artigo não são da NASA. O primeiro autor deste artigo, Colin Raymond, era professor na Columbia University e fez um pós-doutorado no Jet Propulsion Laboratory da NASA entre 2019-2022. Neste período ele escreveu o artigo The emergence of heat and humidity too severe for human tolerance [1](O surgimento de calor e umidade severos demais para a tolerância humana), publicado na Science Advance, em co-autoria com outro colega da Columbia e um pesquisador do Reino Unido. A partir de 2022, Raymond passou a trabalhar na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Em 2022, ele deu uma entrevista para uma página de divulgação científica da NASA que publicou a matéria “Too Hot to Handle: How Climate Change May Make Some Places Too Hot to Live”[2] (Quente demais para lidar: como as mudanças climáticas podem tornar alguns lugares quentes demais para se viver). Todas as notícias publicadas se referem a estas duas publicações, uma de quatro e outra de dois anos atrás, mas esta última se refere aos dados da primeira, do ano de 2020.
Eu não sei se a grande imprensa foi desatenta e comprou essa notícia pelo sensacionalismo ou se existem outros interesses em jogo. O telejornal da Band debochou da notícia dizendo que é para guardar esta informação numa caixinha e abrir em 2070 que todos irão rir muito disso. Os pesquisadores da área de estudos do clima dizem que não se pode afirmar o que irá ocorrer em 2070, mas alertam para os riscos da elevação da temperatura que vem ocorrendo nas últimas décadas.
Vamos ao que o estudo mostra de interessante. Trata-se de um estudo realizado entre 1979 e 2017 que identificou a temperatura de “bulbo úmido” em diversas regiões do planeta. Mas o que é “bulbo úmido”? É um termômetro que calcula a temperatura e a umidade do ar ao mesmo tempo. Os termômetros que conhecemos medem somente a temperatura, que é bem mais alta do que a temperatura do bulbo úmido. Para ficar mais claro, o autor do artigo usou o exemplo de uma pessoa tomando um banho num chuveiro com água bem quente e depois ela sai para um ambiente com temperatura mais baixa. Neste momento o corpo vai transpirar e se resfriar. Porém, se o ambiente estiver úmido e na mesma temperatura da água do chuveiro, o corpo não conseguirá se resfriar (o bulbo úmido estará na temperatura da água do chuveiro). Se esta temperatura for bem abaixo da temperatura do corpo que é de 37°C, não haverá maiores danos, mas se ela estiver próxima dos 35°C, e esta pessoa permanecer por um período de cerca de seis horas neste ambiente, provavelmente seus órgãos entrarão em falência.
Na entrevista publicada em 2022, Raymond diz que os modelos climáticos mostram que certas regiões provavelmente excederão a temperatura de 35°C de bulbo úmido nos próximos 30 a 50 anos. Nos próximos 30 anos as áreas mais vulneráveis são o sul da Ásia, o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho, e nos próximos 50 anos, ou seja, lá por 2070, o leste da China, partes do sudeste da Ásia e o Brasil. Observando-se o mapa percebe-se claramente que ele não está falando do Brasil como um todo, mas de algumas regiões do Brasil, como partes do norte e nordeste, algumas regiões litorâneas e partes do centro-sul. Regiões como Brasília que possui baixíssima umidade do ar terá temperatura do bulbo úmido bem mais baixa.
Lamentavelmente a notícia foi publicada num tom sensacionalista e sem apontar o que podemos fazer para evitar este cenário. A situação é grave sim, pois como mostram os dados do artigo, as temperaturas de bulbo úmido entre 32°C e 35°C mais que triplicaram ao longo dos últimos 40 anos. Quanto mais frequente e por mais horas elas permanecerem, mais inabitáveis se tornarão as regiões onde elas ocorrerem. Porém, temos ainda a oportunidade de agir para evitar que estas previsões se concretizem. Por onde começar? Pelo nosso voto nas próximas eleições!
Referências:
The emergence of heat and humidity too severe for human tolerance. Colin Raymond, Tom Matthews and Radley M Horton. Science Advances. 6, Issue 19. 8 May 2020.
Too Hot to Handle: How Climate Change May Make Some Places Too Hot to Live (Mar 09, 2022)
[1] The emergence of heat and humidity too severe for human tolerance. Colin Raymond, Tom Matthews and Radley M Horton. Science Advances. 6, Issue 19. 8 May 2020.
[2] Too Hot to Handle: How Climate Change May Make Some Places Too Hot to Live - (Mar 09, 2022)
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