Está em um shopping da capital a Exposição Internacional “Human Bodies – Maravilhas do Corpo Humano”. Diz seu anúncio (disponível aqui) que ela “apresenta corpos completos e órgãos reais em plastinação para esclarecer funcionamento da anatomia humana”. Os organizadores se orgulham do fato de a exposição ter sido vista por mais de “40 milhões de pessoas em diferentes países do mundo” e por mostrar “os mistérios da anatomia que sempre provocaram a curiosidade dos seres humanos”. Reivindicam o caráter normal e histórico da dissecação, já que desde “1492, o pintor italiano Leonardo da Vinci já realizava dissecação e experimentos em corpos humanos e de animais, visando conhecer seus mecanismos e funcionamentos”.
A exposição conta com nove corpos reais em poses inusitadas. “São corpos humanos completos, verdadeiros, que se doaram em vida para a ciência. Submetidos ao método da plastinação, estão expostos, mostrando as maravilhas que existem dentro do corpo humano. Alguns corpos destacam-se por estarem em posições esportivas, como é o caso da acrobata e do tenista”. Em sete galerias, são mostrados também “cem espécimes e órgãos… um mergulho por pele e ossos, dos pés à cabeça”. Seus organizadores reivindicam as maravilhas que a exposição proporciona sobre o conhecimento do corpo humano, o elogio do “bem mais precioso que temos, a vida”, nas palavras de Lúcio Oliveira, diretor da Smart Mix, Brasil, uma das produtoras da exposição. Mas é no detalhe que ela revela a que veio: ‘a exposição resgata uma bandeira importante: o conhecimento como entretenimento para todas as idades’. É um discurso encantador. Pena que esteja repleto de ideologia.
Corpos plastinados
A metodologia da plastinação foi criada pelo médico alemão Gunther Von Hagens, que desde os anos 70 disseca corpos em acetona para extrair líquidos corporais e, após, aplica polímero de silicone. Desde 2007, o material resultante da técnica ficou disponível para o público. Não é apenas conhecimento, é um grande negócio. Segundo Joon Ho Kim, em Exposição de corpos humanos: no uso de cadáveres como entretenimento e mercadoria (disponível aqui), todo o problema está na ética utilizada para a aquisição de corpos, que é de desconhecimento do público. Von Hagens possui um programa de doação de corpos, mas Kim afirma que o cientista também usa corpos não reclamados, o que é autorizado pela legislação da China e da Rússia. É o caso da Academia Médica de Novosibirsk, Rússia, que enviou corpos e amostras de cérebro e que foram “rastreadas até um médico local condenado por vender ilegalmente corpos de sem-teto, prisioneiros e pacientes indigentes”.
É preciso lembrar que todas as exposições que vieram ao Brasil enfatizaram o fato de que os cadáveres eram de chineses que doaram seus corpos em vida, mas Kim afirma que isso “é algo notoriamente incompatível com a prática de culto aos antepassados.” Justamente por não ser possível rastrear a origem, pesa sobre esse tipo de atividade grande suspeição em relação à maneira como sua matéria-prima fundamental, os cadáveres, é obtida. Kim diz que a predominância dos traços asiáticos pode ser relacionada à “fundação, em 2001, na cidade de Dalian, China, de uma grande unidade fabril de plastinação que contava, em 2006, com 260 empregados ganhando de 200 a 300 dólares por mês e que, além do fator econômico, também é provável que o suprimento facilitado de corpos humanos tenha pesado na escolha do local.” Kim afirma que na China “o sistema médico geralmente não tem restrições legais ou éticas em usar corpos de pessoas executadas”, e que desde 2004 “se acumulam evidências de que corpos de pessoas executadas vêm sendo utilizados para a preparação de espécimes humanos plastinados”. Segundo Kim, dados do próprio Instituto Von Hagens apontam que em Dalian, havia apenas um corpo com doação documentada entre 647 corpos intactos, 3.909 partes de corpos e 182 fetos, embriões e neonatos, sendo que sete cadáveres mostravam sinais de execução, como ferimentos de bala na cabeça. Confrontado com o dado, Von Hagens acusou Sui Hong-Jin, professor de anatomia da Universidade Médica de Dalian e seu gerente geral na época, como responsável. Além do problema ético com os corpos, há o problema ético de mercado. As patentes de von Hagens caíram em domínio público e o próprio fez transferência de know-how e diversas parcerias, transformando Dalian na meca da produção de cadáveres plastinados, gerando corpos processados não só para von Hagens, mas também para seus concorrentes.
O novo mercado dos corpos
O universo da plastinação de corpos é um grande negócio e dá lucro. A Premier Exhibitions, a Exhibition International LLC e a própria Universidade Médica de Dalian fizeram parcerias com von Hagens. Sui Hong-Jin, ex-gerente de von Hagens, criou em 2005 a Dalian Medical University Plastination Co. Ltd. que comprou a Exhibition International. Diz Kim: “No mesmo ano, a Universidade vendeu sua parte e a empresa foi reincorporada nas Ilhas Virgens Britânicas, conhecido paraíso fiscal, com o nome de Dalian Hoffen Bio Technique Company Limited. Um informativo do SEC12 (2006, tradução minha) cita Hong-Jin Sui como “o designer e fornecedor de todos os espécimes referidos” e mostra que sua empresa deveria fornecer, com exclusividade, por cinco anos pelo menos e ao custo de um milhão de dólares anuais, os “espécimes” explorados pela Premier Exhibitions nas suas exposições.” No capitalismo, o corpo humano é um bem altamente lucrativo.
Depois da Body Worlds, de Amsterdã, a Premier Exhibition e outras vêm replicando o rentável modelo de negócio de von Hagens. Mas Kim alerta que as exposições também ocultam outro negócio altamente lucrativo: “o comércio em escala industrial de corpos e partes corporais plastinados”. É o cadáver na era da commodity, tal qual aplicada ao gado ou ao petróleo, já que a tecnologia permite que se possa aproveitar o cadáver ao máximo, reduzindo-o a cortes e derivados que, depois de processados, serão vendidos como simples mercadorias pela Internet. Kim afirma que a Dalian Hoffen Bio Technique Company possui toda uma linha de espécimes plastinados, animais e humanos, que pode ser comprada pela Internet e que recentemente, o próprio von Hagens também entrou no mercado on-line (disponível aqui), vendendo todo tipo de “espécimes” plastinados para todos os gostos: “de bijuterias feitas de lâminas de pênis de cavalo por € 39,00 a corpos humanos dissecados e inteiros por cerca de 60 mil euros. Para quem quiser comprar corpos humanos em partes, o site oferece cabeças inteiras ou pela metade com preços que variam de € 8,6 mil a € 18,5 mil, torsos que vão de € 8,5 mil a € 47 mil, e órgãos e sistemas diversos por preços que oscilam entre € 550,00 e € 4,5 mil, dentre outros “produtos”. Surpresa: o mercado de órgãos e tecidos humanos já existe entre nós. No capitalismo, tudo, exatamente tudo, é mercadoria.
Por que só eu vejo isso como absurdo? Porque, para mim, o negócio sobrevive graças à ilusão de que, enfim, o corpo humano chegou ao nível das mercadorias nas prateleiras do supermercado. E, por isso, como na definição de ideologia de Marx, assim como as mercadorias que adquirimos nos supermercados estão alienadas de seu processo de produção, ao irmos à exposição Human Bodies, nos alienamos da mesma forma. Não, é uma questão ética, corpos e restos humanos não são mercadorias, mas existe aí uma estratégia de nomeação oculta. Diz Kim que a ABC News revelou em 2008 que uma guia de importação que acompanhava os “espécimes” chineses da Premier Exhibitions era descrita como “modelo plástico para treinamento médico” [Plastic model for medical teaching], o que foi ratificado por Arnie Geller, CEO da Premier. Diz Kim: “Esta afirmação ratifica a lógica por trás dessas exposições e dos sites de venda on-line especializados em lucrar com corpos humanos: afinal, já que parecem bonecos de plástico, por que não sentiriam a liberdade de tratá-los como bonecos? No mesmo programa, Todd Olson, presidente da Associação Americana de Anatomistas Clínicos, discorda que uma pessoa falecida, após passar por um “processo de conservação com plástico”, seja desumanizada a ponto de tornar-se um modelo que não é mais um ser humano. O médico é categórico: “me desculpe, é um ser humano”.
O capital mata o simbólico
Tudo na exposição segue a lógica do capital e parece que ninguém se dá conta disso. Eu não tenho dúvidas: o capital mata a cultura e o simbólico. Não é à toa que os traços individuais dos cadáveres são apagados para sustentar o apelo ao espetáculo, pois tudo é feito separando a parte mecânica da simbólica que o corpo representa, daí a negação ao velório e ao funeral. Da mesma forma, as posições hiperrealistas objetivam negar a dimensão cadavérica e valorizar o show, já que ali os corpos valem pela utilidade e propriedade, diferente da distinção cartesiana entre corpo e pessoa. Aqui, os corpos são propriedade de Van Hagens ou de empresas parceiras. Diz Kim: “A venda da força de trabalho em troca do salário nada mais é do que um dos aspectos do corpo-utilidade”.
Hagens, nos termos de Kim, obtém os corpos à custa de um suposto desejo de ser eternizado, já que “o programa de doação de corpos da Body Worlds conclama as pessoas a doarem seus corpos, prometendo na morte a existência espetacular que lhe foi negada em vida, ainda que a ética do anonimato subentenda que não existem garantias de que sequer farão parte do espetáculo.” A argumentação dos criadores da exposição atualmente em Porto Alegre é baseada em três pressupostos: 1) seu objeto não passa de conhecimento de anatomia para amplos públicos; 2) o corpo humano plastificado é uma forma didática de ensino que alia saber e entretenimento; 3) a iniciativa alinha-se a outras formas de vivissecação do passado. O que é ocultado do público é justamente a ética envolvida em sua produção.
Para mim, os pressupostos de seus organizadores são equivocados. Não se trata apenas de divulgação de conhecimento anatômico. Trata-se de propor uma falsa aliança entre conhecimento e entretenimento de e sobre corpos. Não se pode ultrapassar os limites da ética, não se pode fazer processo de ensino sem ética. As formas de vivissecção de que von Hagens se diz herdeiro não são formas neutras de ver o corpo humano: apresentam uma visão maquínica, o transformam em objeto. É preciso analisar as suas consequências.
O horror estético
A primeira vem da inspiração da obra Discurso Sobre el Horror en la Arte (Casimiro, 2010), do filósofo e arquiteto Paul Virilio. Ele diz que estamos passando do “Horror Econômico” (conceito de Viviane Forrester) para o “Horror Estético”, confusão produzida pela relação entre arte e genética, performance e tecnologia, com a emergência da body art, em obras como as de Stelarc e os corpos de Van Hagens. Tanto os corpos plastinados em si como o caminho aberto por eles são o problema. As obras de Van Hagens simulam as obras dos irmãos Chapman, que têm apresentado regularmente obras de corpos mutilados com grandes feridas abertas, ou Damien Hirst, cujas obras de animais mortos ou em putrefação são tomadas como arte. Seu acesso é livre e as crianças são incentivadas a visitá-las, mas ninguém fala da violência que suas obras encarnam, que tematizam a morte e o horror.
A segunda vem da inspiração da obra Tabu do Corpo (Dois Pontos, 2010), do antropólogo José Carlos Rodrigues. Ele diz que a forma como lidamos com os cadáveres fala muito de nossa civilização. A forma como são apresentados os cadáveres da exposição Human Bodies, em uma proposta de exposição que se pretende científica e didática, oculta o fato de que é mais uma produção entregue à lógica do capital. A apresentação dos organizadores retira os fatores econômicos envolvidos no tema para reduzir tudo a uma questão de interpretação da obra científica que se apresenta como artística e aí, sinônimo de entretenimento. Não é apenas isso, é mais complicado. O que a apresentação oculta é que tais obras de anatomia interessam aos cientistas contemporâneos tomados de assalto pela publicidade. Ocupar os espaços de mercado, como shoppings centers, está se transformando em um grande negócio para os cientistas mais preocupados com a performance do que em apresentar resultados de suas pesquisas e para empresários que lucram com essas iniciativas. Daí os corpos plastinados em “poses”, em “gestos”, performances que negam o lado espiritual que suas peças aspiram como obras de arte. ”É a desaparição da estética”, diz Virilio, mas no caso das obras de van Hagens é mais, é a desaparição da arte e da ciência pela adoção de um aspecto violento, o do corpo real como obra de entretenimento.
Fortunas têm sido manipuladas no campo da produção de exposições de corpos plastinados. As esculturas de Hagens são desses fenômenos que empurram o valor das obras de um cientista para cima, exatamente como a de certos artistas, razão pela qual eles têm todo o interesse em ocupar esses espaços. Ter uma obra de Van Hagens como entretenimento transforma a sua reputação como cientista, mas para isso, o “campo” (Bourdieu) precisa continuar a ter o poder de decidir o que e quem vai ocupar os espaços museológicos. A ciência contemporânea, ao menos a que Van Hagens diz produzir, vem seguindo os caminhos da arte contemporânea, transformando-se num horizonte de investimento de cientistas e curadores que ajuda a justificar os preços de suas exposições – as entradas já estão sendo vendidas em “combos” para toda a família, assegurando ao criador popularidade e prestígio.
A feira dos cadáveres
Não é a primeira vez que uma exposição deste gênero vem ao Brasil. Em 2007, cerca de 670 mil pessoas viram a exposição Corpo Humano, Real e Fascinante, então com 16 cadáveres e 225 órgãos humanos. Kim resumiu a questão: “Adentrar em um salão repleto de cadáveres estripados e mutilados deveria suscitar a mesma sensação de uma câmara dos horrores, já que os mortos são notoriamente objetos de tabu, fontes de mana, considerados impuros, perigosos e, não raramente, repugnantes. Entretanto, os corpos dissecados da exposição, apresentados esfolados ou fatiados, inteiros ou em partes, eviscerados ou não, e tematicamente organizados em sistemas — esquelético, muscular, nervoso, respiratório, digestório, excretor, reprodutor, circulatório — eram tratados como objetos de “arte”. Ao contrário daqueles grandes vidros de formol que distorcem a imagem do seu conteúdo desbotado, largamente usados em laboratórios e museus para conservar restos biológicos, Bodies Revealed é um espetáculo cadavérico no qual corpos dissecados e partes corporais — reduzidos a formas, cores e texturas — são espetacularmente exibidos em pedestais, displays e caixas transparentes, distribuídos meticulosamente em espaços organizados e iluminados para realçar suas formas e cores.” Para Kim, há ali uma lógica visual que merece nossa reflexão: “a mesma lógica visual que encontramos nas máquinas exibidas em feiras e exposições tecnológicas, apresentadas em cortes esquemáticos ou na chamada ‘vista explodida’, para expor suas partes internas com o objetivo de dar ao espectador a visão funcional dos subsistemas que compõem o todo”. Nesse novo universo, “cadáveres” são “espécimes”, a fossilização natural é substituída pela plastinação artificial. Diz Kim que “há um evidente sensacionalismo mórbido nas exposições de corpos humanos, visto que não haveria o mesmo apelo se os corpos expostos fossem sintéticos ou de animais. Isto evidencia o fato de que a relação que se estabelece entre nós, espectadores, e os cadáveres expostos tem uma dimensão social, distinta da que teríamos se fossem apenas modelos de plástico ou cera, ainda que reproduções perfeitas, ou de um cadáver animal, qualquer que seja a técnica de conservação.”
Entretenimento mórbido faz parte do espetáculo capitalista. Apresentar-se como empreendimento educativo é apenas uma fachada para o consumo de cadáveres na forma de espetáculo. Não é, claro, algo inédito tratar cadáveres como entretenimento. Kim cita Schwartz, que diz que o necrotério de Paris, na passagem do século XIX para o século XX, era um espaço público, verdadeiro teatro, aberto 7 dias por semana com até 40 mil visitantes e “produto de um voyeurismo motivado pela espetacularização da morte”. As visitações públicas ao necrotério de Paris foram encerradas em 1907, não sem protestos, cita Kim.
A morte como processo social
A morte, como a vida, é um processo social, afirma Rodrigues. Ela está presente nas mitologias, nos rituais e no inconsciente. Exerce fascínio e é mercadoria jornalística que a exalta, ao contrário da vida cotidiana, que a dissimula. Falamos pouco dela, evitamos expor as crianças a ela, afastamos nosso olhar “de maneira a não deixar dúvida de que se quer separar sua visão de algo que não quer ver” (Rodrigues, p. 49). A morte é um tabu, o que significa que tem suas propriedades, variáveis, formas de cuidado e rituais. Não temos garantias contra a morte, diz Byung-Chul Han em seu O desaparecimento dos rituais (Vozes, 2021), exatamente o que quer o capital, que se quer uma garantia contra a morte. Não podemos simplesmente fazer desaparecer os ritos com os mortos sob o risco de fazer desabar a própria base da sociedade.
Os rituais criados pelas culturas para relacionar-se com seus mortos objetivam desagregar o morto do mundo dos vivos, pois a morte não cria um cadáver qualquer: “é necessário dar-lhe uma sepultura”, diz Rodrigues. “Trata-se de manobras sociais, por meio das quais o grupo reafirma, por meio do morto, a solidariedade do grupo a que ele pertenceu” (Rodrigues, p. 53). Os corpos de Van Hagens são insepultos: seus organizadores afirmam que a obtenção dos corpos foi mediante autorização, mas Kim relata as dúvidas em relação a isso, já que as feições orientais predominam nos corpos. Privados de enterro e das formas que resolvem o drama da finitude humana, os corpos de Van Hagens são elevados a outro patamar, o de mercadoria. A exposição, com seus corpos à mostra, insepultos, é exatamente o contrário da boa vida social porque aniquila a ideia de solidariedade que devemos cultivar em relação aos semelhantes. A exposição não é o retorno à ordem, mas o retorno ao consumo. A morte está fora do lugar, os corpos plastinados expurgam a muralha de proteção que a sociedade cria em relação ao significado simbólico dos mortos. Das culturas primitivas, a exposição somente preserva a proibição de se falar o nome do morto, como é em várias culturas, substituindo-o por espécime.
É verdade, como diz Rodrigues, que o trabalho social em relação aos mortos varia em relação a cada sociedade. Agora, na nossa sociedade capitalista ultraneoliberal, já descobrimos um jeito de lucrar com o corpo dos mortos: basta plastiná-los e colocá-los em exposições. O ato de morrer não é mais uma ocasião pública de manifestação de tristeza, é um empreendimento lucrativo e lúdico. Fim da era do cadáver repugnante, ascensão da era do cadáver lúdico. Não há necessidade de preparar o morto para uma viagem para outro mundo, nem precisamos de outro porque o capitalismo já basta. Nada de preservar o morto colocando-o em caixões, ou cremá-lo, as duas formas contraditórias de nos relacionarmos com o corpo morto: a decisão dos parentes é substituída pela decisão dos empresários ou do próprio Van Hagens. A morte, antes vivida em um ambiente de reduzidas dimensões, a família, passa a ser vivida em grandes, a sociedade de consumo. Não sabemos das reações dos familiares às mortes de seus entes queridos e as origens dos corpos mortos utilizados por Van Hagens: somos ocultados do vazio que aqueles mortos deixaram em suas famílias. A exposição faz isto: quebra o curso normal das coisas, questiona nossas bases morais e, numa palavra, desagrega a nossa sociedade. É preciso respeito aos mortos.
O que os corpos não são
Os corpos de Hagens não são espécimes. São individualidades carregadas de sentido pelo corpo social do qual faziam parte. Quando Van Hagens plastina seus “espécimes”, é como se houvesse um duplo roubo: não apenas do corpo de um grupo social, mas da dignidade que deve ser dada aos corpos nos termos das estruturas sociais. O corpo faz parte do edifício mais sagrado do social. “Atingido em seu princípio mais sagrado, o edifício social corre o risco de desmoronar”, diz Rodrigues.
Como Van Hagens faz isso? Tirando dos corpos todo o pavor que a morte inspira. A morte de reis, no passado, é vista com assombro porque ele encarna a personalidade social. É o fim que aponta para a precariedade da organização social, apela à consciência, e os rituais são a forma de sua reelaboração. Até onde sei, o próprio Van Hagens encontra um limite: não há corpos de crianças plastinadas porque a simples ideia da morte de uma criança já é assustadora, já que a sociedade coloca sobre elas o signo da esperança. A morte do corpo é a morte do símbolo da estrutura social, diz Rodrigues.
A plastinação aspira realizar o que os ritos proporcionavam: a sensação de conquistar a vida eterna, a ressurreição. Não é mais necessária uma passagem para isto, o capitalismo, com a plastinação, garante uma vida eterna aos corpos desde que privados de todos os seus líquidos. Curiosamente, o capital, para isso, precisa passar por cima de rituais que garantiam isso até agora. Ao invés de garantir ao cadáver uma aparência como em vida, com suas roupas, uma boa aparência, agora é o contrário, corpos são expostos nus, com os músculos à vista. “O que se teme na morte é exatamente o que ela tem de morte”, finaliza.
A morte como espetáculo
As exposições como a de Van Hagens confirmam a ideia de Michela Marzano em La muerte como espectáculo (Tusquets Editores, 2010): já estamos vivendo na sociedade da indiferença. A autora assim concluiu seus estudos sobre a realidade-horror que, de certa forma, tem semelhança com as obras de Van Hagens. É que Marzano estudou a violência presente na pornografia, com suas imagens de violência, violação e humilhação. Eu entendo que há uma notável semelhança entre o pornô descrito por Marzano e as imagens da exposição: em ambos há a generalização de um espetáculo cruel do corpo. O que o pornô é para o sexo, a plastinação de Van Hagens é para a ciência. Ambos são produção de um cenário onde cada vez mais o extremo mistura a ficção e a realidade. O caráter artificial do pornô está no roteiro das modelos e atrizes, o caráter artificial das obras de Van Hagens está nas cenas humanas de corpos já não tão humanos. Mas eles ainda são, eis a questão.
Marzano fala das películas snuff, que supostamente se faziam nos anos 70 de sexo com assassinatos reais. Ela se questiona: “A partir do momento em que se mostram indivíduos reduzidos a ‘coisas’, o que nos impede de deslizar da ficção para a realidade?” Aos filmes de horror extremo de Marzano somam-se as peças de horror extremo de Van Hagens. Como no caso das imagens que circularam na internet em 2004, dos vídeos macabros de grupos islamistas mostrando execuções de prisioneiros no Afeganistão, agora, as peças de exposição mostram uma crueldade em estado puro, crueldade da ciência e do mercado de entretenimento. Diz Kim a respeito: “O espetáculo será tanto mais grandioso quanto mais surreal for a situação na qual o cadáver seja colocado. Desde a primeira exposição que estreou na cidade de Tóquio em 1995, misturam-se signos da arte clássica com corpos plastinados modernos e o que surpreende é que, justamente, Hagens queira representar seus corpos em posições como se estivessem vivos.”
Corpos ou partes corporais conservadas e modelos de cera visavam suprir uma demanda que não era atendida pelas dissecações, já que estas eram limitadas às estações frias do ano e à oferta de cadáveres. Diz Kim: “Tanto em um caso como no outro, é evidente que o corpo não é nada além de insumo, pois qual o significado de se colocarem cadáveres dissecados como se estivessem jogando bola, tocando guitarra, pulando, dançando ou mesmo copulando que não seja o de que o corpo humano pode e deve ser apropriado como mera matéria-prima para ser esculpida de acordo com os desejos estéticos de alguém?” Eis a era da indiferença de que fala Marzano. Eu me recuso a ser indiferente. Eu me recuso a ir nessa exposição, eu me recuso a participar de sistemas que tratam o outro como objeto.
Todos os textos de Jorge Barcellos estão AQUI.
Foto da Capa: Divugação