A discussão sobre o Cais Mauá começou com uma metáfora sobre animais a partir do artigo da historiadora Zita Possamai publicado no suplemento Doc do Jornal Zero Hora, que propôs que o projeto de ocupação do Cais desse continuidade à história do espaço, e Jaqueline Custódio, que mostrou as falácias do discurso neoliberal contidos na atual iniciativa do governo estadual sobre o local. Os artigos contrariaram interesses e as respostas vieram sucessivamente. Leonardo Busatto e Ramiro Rosário acusaram seus opositores de politizar a discussão e em nome da urgência desejam a realização de seu projeto de privatização. E o jornalista Orestes de Andrade veio se juntar à dupla na defesa do argumento neoliberal, revelando-se o mais recente adepto da happycracia: para ele, todos seremos felizes se aceitarmos a proposta do Estado, a de transformar o espaço do Cais no nosso novo espaço de consumo. Defensor da proposta privatista, espécie de criação de um shopping center horizontal misto com um emprendimento habitacional das elites, o projeto reduz a história da ocupação dos espaços do Cais a um dado eventual, sacraliza o modo de devoração da cidade pelo capital ao espaço do porto com a fantasia de oferecer “novas oportunidades em vários setores” e propõe a armadilha de que os interesses do Coletivo Cais já estão incluídos na proposta e, portanto, “para que a discussão?” O futuro proposto pelos neoliberais é o da transformação do espaço em mais novo lugar de êxtase do capital: não é suficiente ser sustentável, é preciso dar o máximo de lucro. E dá-lhe prédios à exaustão que transformam a skyline da cidade em mais uma expressão do brutalismo arquitetônico.
Mas Orestes Jr tem razão num ponto: isso acontece porque polarizamos o debate. É o projeto do governo ou o da oposição. É a opção entre privatização e uso público. Por isso, reivindico o direito de introduzir, um terceiro projeto, o meu projeto para o cais. Sou historiador, e, portanto, penso o lugar em termos museais. Assim, os armazéns do Cais dos meus sonhos seria um imenso museu, que eu chamaria de Museu do Futuro, contraponto necessário do Museu do Amanhã, do Rio de Janeiro (neoliberais adoram a concorrência, dizem). O Museu do Futuro e o Museu do Amanhã parecem iguais, mas não são. O meu museu é um museu de história do pensamento e das representações; o Museu do Amanhã é um museu de ciências e da história do meio natural. Ambos compartilham o fato de nascerem em áreas portuárias para sua revitalização, mas enquanto que um está voltado para fatos concretos, o meu museu se destina às representações sociais. Por isso a organização interna do meu museu é totalmente diferente: sai a exposição sobre a história do Cosmos do Museu do Amanhã e entra no seu lugar, no meu Museu do Futuro, a exposição de como advinhos, profetas, astrólogos e estudiosos representaram o tempo e projetaram o futuro; saem os espaços dedicados aos labirintos do DNA e entram os espaços que mostram como os antigos se apropriaram do futuro através do Estado, no caso dos povos da Antiguidade, ou através da Igreja, na época Medieval. E vai-se sucessivamente, de armazém em armazém, da Era das Profecias à Era da Astrologia e desta, à Era das Utopias, e, assim, uma a uma as representações do futuro vão sendo demonstradas através de imagens, objetos, reproduções de documentos até a última Era, a Era das Predições Científicas e Imaginárias.
É aqui que entra o meu “kinder ovo”, como diz a clássica definição do filósofo esloveno Slavoj Zizek. O meu Museu do Futuro tem metade de seu espaço destinado a um parque temático. É ele que será fonte de lucro, da mais-valia almejada pelos neoliberais, atraindo o turismo para a cidade e região, exatamente como fazem outros parques temáticos de sucesso, o que, portanto, dispensará a construção de grandes prédios que visam apenas maximizar os lucros de empresários gananciosos em prejuízo da skyline da cidade. Sabe-se hoje que os quatro parques temáticos da Disney Co chegam a lucros de 6,7 bilhões de dólares e o menor deles, o Magic Kingdon, gera um lucro de 1,7 bilhão de dólares. Para os defensores do projeto do Estado, a proposta do Coletivo Cais não é sustentável sem os prédios, argumento que nega o princípio que os próprios neoliberais defendem, de que a atividade cultural é uma atividade econômica lucrativa como as outras. Ela o é, mas não como desejam os neoliberais. Por isso, a proposta do Coletivo Cais é superior: qualquer proposta precisa ser adequada, aquilo que o filósofo coreano Byung Chul Han, em sua obra Bom Entretenimento, definiu: qualquer obra naquele espaço precisa constituir um hipersistema cultural que deve decidir o que é passível de pertencer ou não ao espaço do Cais. Logo, a atividade cultural não é uma atividade como as outras, como defendem os neoliberais: história do lugar mostra que ela ali a cultura tem a primazia. É o princípio organizador do lugar. Lotear o espaço enchendo de arranha céus não tem relação com o lugar.
Mas tentemos um diálogo, ok? Os defensores da atividade cultural como atividade econômica costumam usar o termo “experiência”. Você vai a Disney e vê o quê? A reprodução de sets da epopéia Guerra nas Estrelas. Você paga por isto. Você viaja por isto. Hoje o entretenimento gera valor. Qual é minha proposta de parque temático para o Cais? Eu o chamaria de Os Mundos de Fantasia de Irwin Allen. Eu imagino em cada grande armazém a experiência de estar nos espaços de seriados da minha infância como Perdidos no Espaço, Túnel do Tempo, Terra de Gigantes, ou filmes como Aventuras de Poseidon e Inferno na Torre. Veja bem, logo o mundo, como em tudo, vai se cansar de tanta tecnologia de Star Wars e Star Trek e vai se tornar vintage. Reproduções de cenários das naves espaciais como as dos seriados dos anos 60, que alimentaram a fantasia da minha geração se tornarão irresistíveis. Eu fico imaginando o efeito de réplicas das espaçonaves como a antiga Jupiter 2, Spindrift ou da sala de observação e transporte do Túnel do Tempo no interior dos armazéns, e, claro, uma reprodução no Cais do próprio submarino Seaview e seu subvoador, tudo isso compõe meu parque temático imaginário para o Cais. Sim, essa visão não estará imune `às críticas: por que não poderia ser de outros universos imaginários? E aí virão os defensores de Gerry e Silvia Anderson e seu Espaço 1999, Thunderbirds, Joe 90, entre outros, o que irá provocar uma nova divisão.
Loucura saudosista? Talvez. Nos Estados Unidos, Huston Huddleston, um fã de ficção científica, encontrou em 2012 no lixo parte do cenário de “Star Trek: The Next Generation” e teve a ideia de construir um museu inteiro dedicado à ficção científica em Hollywood. Ele começou a levantar fundos para restaurar o cenário e levá-lo para uma série de convenções dedicadas a sci-fi. Ele deseja um museu com objetivos educacionais e sem fins lucrativos para homenagear o gênero. Hoje ele tem apoio de roteiristas de séries Sci-fi de sucesso como “Star Trek” além de empresas como Google e a produtora Paramount. A Kickstarter of Hollywood Sci Fy Museum vem aceitando doações. Informações sobre o projeto estão em https://scifiworld.org/.
Não. O debate ainda não acabou. Há ainda muito a discutir, muitas opções. Se eu que não entendo nada de ações posso em breves linhas oferecer uma opção, outros cidadãos podem. E têm direito. Foram ouvidos? Não. A quem interessa seu silêncio? Para os detentores do capital. Para mim, a principal questão do projeto do governo é: será que a rentabilidade que as torres de apartamentos prometem para o Cais é a concessão que devemos fazer e que deve ser autorizada por todos? Se levarmos em conta o que defende Orestes Júnior e o Coletivo Cais, aminha resposta é não. Não sou contra a interferência privada, mas contra a visão de que a proposta defende uma visão de consenso. A ideia de lotear o espaço entre os interessados é um falso argumento democrático: ele despreza a história do lugar, apresenta a solução do capital como a única possível, é ultraneoliberal pois sacrifica a história do espaço ao desejo de mais valia do capital. Sem meias palavras: essa proposta está cheia de falhas e a primeira é esconder o fato de que interessa apenas a elite financeira da cidade e não a multidão da cidade. É preciso, mais uma vez, o exercício sociológico, examinar que agentes sociais que a defendem e o porquê e quais as consequências para a história do lugar, para a skyline da capital e para os sentidos que seus habitantes dão ao lugar. Caso contrário, a “proposta de consenso” somente reduzirá os interesses do comum aos das elites financeiras e o argumento, estratégia esperta lacaia a serviço da devoração de um dos espaços que dá nome a cidade: PORTO Alegre.
Como propõe Brian Massumi em O que os animais nos ensinam sobre política, talvez estejamos usando o exemplo correto dos comportamentos dos animais da forma errada: eles não estão aí para “ofender” nossos adversários, mas, ao contrário, nos levar a entender que o que realmente conta para o animal é o aspecto lúdico da existência, de que se há uma política animal que vale a pena conduzir para o lugar é a política que prioriza o lúdico, o cultural, e aí, minha proposta talvez tenha algum sentido.
*Jorge Barcellos é Doutor em Educação, autor de O êxtase neoliberal (Editora Clube dos Autores)