Num certo dia quente de verão no norte da Califórnia um casal, a filha de um ano e seu cachorro sairiam para caminhar em uma trilha perto de sua casa. Era um casal jovem, amantes da vida ao ar livre. Haviam de mudado há pouco tempo para uma casa no campo, próxima de uma mata de pinheiros. A trilha ficava em boa parte na sombra, por isso eles não devem ter se preocupado.
No dia seguinte, porém, a babá chegou na casa por volta das 8 da manhã e estranhou que não havia ninguém. Chamou-os pelos celulares e nenhum respondeu. Ela então avisou a polícia. Iniciou-se uma busca que envolveu os vizinhos, equipes profissionais e até um helicóptero.
Na manhã seguinte, às 9:30, as equipes de busca encontraram os corpos do rapaz, da menina e do cachorro. Estavam sentados na trilha. O corpo da jovem mãe foi encontrado no meio do mato. Aparentemente saíra andando desnorteada em busca de ajuda.
Eles morreram de calor.
É assim que começa o livro que inspirou o título dessa coluna: The Heat Will Kill You First – Life and Death on a Scorched Planet1 (em tradução livre: O Calor Vai te Matar Primeiro: Vida e Morte num Planeta Incandescente) do jornalista e escritor americano Jeff Goodell.
Semana passada meu colega aqui da Sler, Luiz Felipe Nascimento, publicou uma coluna sobre os perigos do calor, sobre os quais eu já havia alertado brevemente em colunas anteriores. O assunto é amplo, e muito sério. Deveremos voltar a ele muitas vezes. Hoje eu gostaria de falar sobre as consequências do aumento do calor no mundo e no Brasil.
Em todo o planeta, temperaturas extremas (ondas de calor) e suas consequências, como secas e queimadas, dobraram nos últimos quarenta anos. Embora ao mencionar “eventos extremos”, geralmente pensemos em tempestades e inundações, um estudo recente da Carbon Brief, site britânico que cobre assuntos relacionados ao clima, concluiu que, dos eventos extremos registrados nos últimos vinte anos, 43% representam onda de calor, 17% secas e 16% chuvas catastróficas e enchentes.
Todos os anos, no mundo, milhares de pessoas morrem devido às ondas de calor, que ficarão cada vez mais intensas com o progressivo aquecimento da atmosfera. As ondas de calor causaram algumas das catástrofes naturais mais mortais já registradas. Uma onda de calor que atingiu a Europa Ocidental em 2003 deixou mais de 70 mil mortos. E outra, que afetou a Rússia em 2010, matou mais de 50 mil pessoas. No ano de 2022, estima-se que 60 mil pessoas morreram em consequência do calor em toda a Europa. 2023 foi o ano mais quente da história. As estatísticas ainda não estão disponíveis, mas não devem ser muito diferentes. E 2024 promete ser ainda mais quente.
Mesmo em países quentes, como o Brasil, onde as pessoas estão mais habituadas às altas temperaturas, não podemos desprezar o aumento do calor. Já mencionei em outra coluna que o Brasil enfrenta uma epidemia de doenças renais. Ninguém sabe exatamente por quê. A explicação mais plausível é que mais pessoas estão sendo submetidas ao excesso de calor, seja as que trabalham ao sol, seja os idosos, que sofrem com desidratação crônica.
O calor acentua os episódios de desidratação, distúrbios gastrointestinais, ataques cardíacos e, como disse acima, doenças renais. É difícil se estimar quantos são os casos que se devem realmente ao calor, mas as evidências apontam que o aumento dessas doenças – e os casos estão de fato subindo – deve ser, em grande parte, devido ao aumento da temperatura.
Um estudo recente mostra que as mortes relacionadas ao calor excessivo podem aumentar 770% de 2030 a 2080 em todo o mundo. O sistema humanitário global não está preparado para resolver uma crise dessa proporção. Um estudo da ONU aponta que o número de pessoas vivendo num calor extremo nas áreas urbanas aumentará em 700%, principalmente na África e no Sudeste da Ásia.
No Brasil e em todo o hemisfério sul, observou-se ondas de calor cada vez mais frequentes e intensas nos últimos dez anos. A Austrália vem sofrendo terrivelmente com temperaturas extremas e incêndios florestais. Na América do Sul, em 2021, houve recordes de temperatura no Paraguai, Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul. As ondas de calor se repetiram em 2022 e 2023. Nesses anos atuaram tanto o fenômeno La Niña como o El Niño. Ou seja, são tendências que não parecem refletir apenas esses fenômenos. E vieram para ficar.
Mas não é só nos países tropicais que faz calor. Em muitas regiões de clima temperado o verão pode ser escaldante. Já citei os casos da Austrália e da Europa. Os Estados Unidos são outro exemplo. Em várias cidades, a temperatura pode ultrapassar os 40º Celsius por muitos dias seguidos, mesmo em regiões mais ao norte, como Chicago, Detroit e Nova York.
As cidades modernas são conjuntos de asfalto, concreto e aço, materiais que absorvem e amplificam o calor durante o dia e o liberam à noite. As pessoas se refugiam em prédios e casas com ar-condicionado. Mas os aparelhos de ar-condicionado emitem ar quente, contribuindo para agravar o problema e demandando uma quantidade brutal de energia.
As cidades são verdadeiras ilhas de calor. Jeff Goodell, em seu livro, afirma que o centro de Phoenix, no estado de Arizona, pode ser 10 graus mais quente do que o resto da cidade. As áreas centrais de Nova York podem ser 5 graus mais quentes durante o dia e 10 graus mais quentes durante a noite do que os subúrbios mais arborizados.
Esse efeito do calor nas cidades pode ser tão dramático quanto o próprio aquecimento global. Por volta de 2050, 70% da população mundial vai viver em cidades. A soma dos efeitos do aquecimento global e o calor produzido dentro das cidades pode levar a tragédias ainda inimagináveis.
Precisamos reduzir a emissão de gases de efeito estufa e a maneira como vivemos. As cidades precisam ser replanejadas para lidar com o calor extremo. Mas, com notáveis exceções como Singapura, o que estamos vendo é justamente o contrário.
O termo em inglês cascading é utilizado para descrever fenômenos simultâneos amplificados um pelo outro cujo efeito combinado é muitas vezes maior que a some de cada um separadamente. Usa-se as expressões cascading effects ou cascading damages. A melhor tradução para o português, que não é muito fiel ao original, é “efeito cascata”.
Um exemplo disso é o Furacão Katrina, que causou efeitos em cascata na infraestrutura de Nova Orleans que ninguém previu que poderiam acontecer. Quando a cidade já estava castigada pela chuva intensa, os diques que a protegem se romperam, devido à subida das águas do rio Mississipi, empurradas pelo vento. Milhares de prédios e casas foram inundados, as pessoas ficaram isoladas, faltou energia e água. As operações de resgate falharam porque as equipes não conseguiram chegar em muitas áreas. O resultado foi mais de 2 mil mortes e mais de 100 bilhões de dólares de prejuízo.
O calor extremo pode causar falhas em cascata, não apenas afetando diretamente as pessoas, mas também causando falta de eletricidade, seja por sobrecarga devido aos aparelhos de ar-condicionado, incêndios que afetem as redes de energia ou mesmo quebra de equipamentos devido ao excesso de calor, assim como falta de água (por conta de secas ou falta de energia para acionar as bombas).
Apesar desse risco, Jeff Goodell faz no seu livro uma observação interessante. Nos Estados Unidos, as pessoas estão se mudando para as áreas mais quentes! Pode ser paradoxal, mas se deve ao fato de que o calor é um inimigo mais sutil, mais silencioso. Então, as pessoas fogem de áreas sujeitas à tempestades e furacões, ou mesmo do avanço da costa, e se refugiam em cidades e condomínios rurais em regiões áridas que prometem um paraíso movido a ar condicionado e água dos lençóis subterrâneos. Essa combinação pode dar muito errado.
No Brasil ainda não se detectou fenômeno parecido. Mas já temos muita gente morando em cidades que são muito quentes em pelo menos uma parte do ano.
Como seria uma tragédia comparável ao Katrina causada pelo calor? Imagine a cena. A cidade passa há vários dias por uma onda de calor intensa, acompanhada por seca e incêndios nas áreas rurais. Então, seja por uma sobrecarga devido aos aparelhos de ar-condicionado ou por um incêndio na mata que afeta as linhas de energia ou mesmo falha de equipamento por causa do calor excessivo, ou pior, pelo efeito combinado (em cascata) de várias causas, o fornecimento de energia é interrompido.
Os sinais de trânsito deixam de funcionar. Os celulares também. Os prédios e casas, muito sem janelas suficientes porque são projetados para passar 24 horas com o ar-condicionado ligado, se transformam em armadilhas mortais. Começa a faltar água. Sai quase todo mundo para rua, em busca dos filhos, dos pais, do cachorro que ficou na creche. Ou para comprar água e mantimentos.
O trânsito vira um caos. Nos postos de abastecimento, as bombas não funcionam. Começam os saques em lojas e supermercados. A cascata de violência se espalha pela cidade. A polícia tem dificuldade de se deslocar e atender tantos casos. Incêndios começam a ocorrer. Mas os bombeiros não têm água.
Se a energia, por alguma razão, não voltar, em poucos dias as pessoas começam a morrer de calor, sede, fome ou violência.
Esse cenário apocalíptico, que potencialmente já poderia ocorrer em alguns lugares atualmente, se tornará cada vez mais provável com o aumento da temperatura global e de pessoas vivendo em grandes cidades. Cresce também a possibilidade de ser causado por ataques de hackers.
É preciso, é urgente, que nos preparemos para esse cenário.
Mas estamos mais preocupados com as chuvas e inundações. O que é compreensível, pois estamos vendo seus efeitos todos os anos à nossa volta. Mas o que nós não vemos pode ser ainda mais perigoso. Pelo alcance e variedade dos danos associados a ele, o calor pode nos matar primeiro…
Observações finais:
- Leia mais sobre os problemas do planeta no meu livro “Planeta Hostil”, publicado pela Editora Matrix em fevereiro de 2024. E para vídeos e textos adicionais confira também minha conta do Instagram @marcomoraesciencia.
- 1Jeff Goodell, 2023, The heat will kill you first – Life and death on a scorched planet, Little, Brown and Company, New York.
Foto da Capa: Agência Brasil