A discussão sobre capacitismo, sempre tão restrita aos meios que lutam por inclusão e pelos direitos das pessoas com deficiência, chegou ao grande público na última semana. Tudo porque tivemos cenas de capacitismo explícito no Big Brother Brasil, o famoso BBB. Se o capacitismo acontece de forma tão clara na “casa mais vigiada do Brasil”, imaginem em outros lugares onde ninguém pode “dar uma espiadinha”.
Como muita gente ainda não conhece o termo “capacitismo”, lembro a definição dada pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), da Academia Brasileira de Letras:
- Discriminação e preconceito contra pessoas com deficiência.
- Prática que consiste em conferir a pessoas com deficiência tratamento desigual (desfavorável ou exageradamente favorável), baseando-se na crença equivocada de que elas são menos aptas às tarefas da vida comum.
O BBB 24 conta com a participação de Vinícius Rodrigues, um dos principais nomes do esporte paralímpico brasileiro. Aos 29 anos, o atleta paranaense já conquistou uma medalha de prata nos Jogos Paralímpicos de Tóquio 2020, além de deter o recorde mundial dos 100 metros rasos da classe T63, destinada a velocistas que passaram por amputações acima do joelho.
Mesmo com esse currículo, o atleta não deixou de ser vítima de capacitismo, como contamos nos 2 primeiros episódios da coluna de hoje.
FALTA DE ACESSIBILIDADE
Um dos grandes eventos do BBB é a “prova do líder”, pois o participante vencedor ganha algumas regalias em relação aos demais. Quando as provas começaram, Vinicius Rodrigues teve diversas dificuldades em função de sua deficiência, a produção da atração televisiva não pensou se o atleta seria prejudicado ou se estaria competindo em condições de igualdade com os demais.
Inclusão é isso: permitir que a pessoa com deficiência participe das atividades cotidianas em uma situação de igualdade com os demais. E o meio para isso é a acessibilidade, que pode ser pensada tanto com adaptações para garantir a igualdade como fazer provas em que a deficiência não prejudique o participante.
Nas redes sociais, o influencer e ativista dos direitos das pessoas com deficiência Ivan Baron desabafou: “Na 1ª prova do líder não pensaram em acessibilidade e o Vinicius já foi prejudicado. Não queremos privilégios para ele, mas é preciso ter EQUIDADE na competição para que sua deficiência não seja algo que atrapalhe seu jogo!”
Ao que tudo indica, o BBB aprendeu a lição e está atenta para isso. O nome do programa faz referência ao “Grande Irmão” do livro de 1984 de George Orwell. Na obra, o “Big Brother” vê a tudo e a todos, todo o tempo. Que ele enxergue a acessibilidade também!
CAPACITISMO RECREATIVO
O BBB também foi cenário do chamado “capacitismo recreativo”, o preconceito que é expresso em uma piada ou brincadeira. A pessoa com deficiência fica constrangida e o preconceituoso diz que só estava brincando, como no programa de TV onde alguns brothers colocaram apelidos tanto na prótese como em Vinícius, ambos fazendo referência a sua deficiência.
A “piada” constrange a pessoa com deficiência que, muitas vezes, ainda é tachada de “chata” ou “intolerante” por não aceitar a brincadeira. Mas preconceito não é piada, é coisa séria.
Hoje, considera-se o “capacitismo recreativo”, assim como o racismo recreativo, como um tipo de discurso de ódio que discrimina, estigmatiza, segrega e perpetua velhos preconceitos.
CAPACITISMO NO TRABALHO
Conheci Juliana no ano passado quando dei uma palestra sobre os aspectos sociais das licitações sustentáveis no Tribunal em que ela trabalha. Ela era a responsável pela divulgação do evento e o trabalho foi impecável: mais de 200 pessoas assistiram ao evento online.
Ela descobriu sua condição de autistas somente quando já era adulta e tornou isso público apenas no início do ano passado, em janeiro de 2023. Como ela mesma diz:
“Decidi compartilhar a minha experiência para que as pessoas entendam que não é vergonha ser autista e que podemos trabalhar, estudar e que somos capazes. Acho importante falar sobre o assunto para que pessoas como eu, que sofreram boa parte da vida sem ter o diagnóstico, procurem ajuda e possam se tratar.
Recebi o apoio de muitas pessoas e também passei a sofrer preconceito, questionamentos sobre as minhas capacidades e sentir o incômodo de alguns por eu não ter vergonha de ser como sou.“
Na última semana, uma página de humor de seu Estado abriu espaço para perguntas anônimas. Entre as muitas acusações de infidelidade alheia, alguém escreveu que “agora a moda dos servidores é aparecer com laudo de autismo para mamarem ainda mais na teta pública conseguindo assim vários benefícios sem trabalhar”.
A “denúncia” foi publicada de forma anônima na tal da página nas redes sociais e gerou muita repercussão, pois o perfil tem 75 mil seguidores. Por se tratar de uma cidade relativamente pouco populosa e de um tribunal pequeno, se comparado ao de outros estados, as pessoas automaticamente associaram que a pessoa citada na postagem foi a Juliana.
Juliana trabalha há mais de 16 anos lá, sendo a única servidora que tornou pública sua condição de autista. Ela está há quase 4 meses afastada do trabalho em licença saúde. Não está afastada por ser autista, mas por outras questões de saúde.
Em minha coluna da semana passada, falei das dificuldades dos autistas conseguirem atendimento médico. Mas o atestado ou laudo que reconhecem sua condição de autista não são suficientes para quem tem preconceito. Muitos seguem duvidando do autismo da pessoa, menosprezam as necessidades de adaptações e acha que o autista usa sua condição para obter vantagens indevidas.
Essa é mais uma faceta do capacitismo, que deslegitima a identidade e as necessidades da pessoa com deficiência. Infelizmente, é muito mais comum do que se pensa. Existem milhares de Julianas por aí, uma delas pode estar trabalhando com você.
FALTA DE APOIO
Uma mãe de 63 anos matou seu filho autista de 27 anos a tiros e depois se suicidou no Distrito Federal.
Como dito em texto publicado pelo Instituto Lagarta Vira Pupa, “em meio a tantas suposições, é importante lembrar que milhares de mães e filhos com deficiência se encontram no mesmo barco: solidão sem fim, abandono da sociedade, da família e do Estado, saúde física e mental precárias. Situações que, vez ou outra, levam pessoas ao extremo.”
Tragédias assim comovem a sociedade, mas não a ponto de buscar soluções para o abandono dos autistas e suas mães. Como disse Debora Sauerssig, também ela uma mãe atípica: “mulheres/mães atípicas se M@T@M todos os dias pelo abandono. pela dor sem eco, pelo silêncio ensurdecedor de suas próprias dúvidas e medos, pelo desamparo, porque desistiram de nadar em busca de garantias e direitos sociais (educação e saúde), porque o fim se mostra como alívio.”
A invisibilidade e a falta de uma rede de apoio são das principais queixas das chamadas mães atípicas diante das dificuldades diárias. O desespero dessa e outras mães vem de um Estado que não fornece o mínimo para uma existência digna, de uma sociedade que não se importa com isso e de famílias e amigos que viram as costas.
Mães esgotadas e sobrecarregadas nos trazem uma pergunta que nos desafia como sociedade: quem cuidará das cuidadoras?
Uma das respostas é o gesto extremo e doloroso dessa mãe que também é o ponto final dessa trilha que começa com a falta de acessibilidade e de como é natural que tudo isso vire piada. Passa pelo preconceito na escola e, depois, no trabalho. A falta de uma rede de apoio é o salto no vazio sabendo que não haverá nada nem ninguém para lhe amparar.
Afinal, todos já haviam desaparecido há muito tempo.