Machado de Assis viralizou nas redes sociais após o vídeo de Courtney H. Novak, escritora americana, falando do clássico “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. “Me digam, o que eu vou fazer pelo resto da minha vida depois do livro? Tenho um monte de coisa para ler ainda, mas nada vai se comparar a isso daqui” foi a reação dela quando ainda faltavam cerca de 100 páginas para concluir a leitura. O vídeo fez o escritor ser assunto no Tik Tok, no Instagram, aqui e nos EUA, e multiplicar a procura pela edição, aqui e lá também.
A influencer está em um projeto em que lê um livro de cada país do mundo e se encantou com a prosa machadiana. Tanto que trapaceou o seu experimento e resolveu ler “Dom Casmurro”. E, como todo leitor que descobre a obra do Bruxo do Cosme Velho, já está se perguntando se Capitu, traiu (ou não) Bentinho.
Compreendo perfeitamente o que ela diz. Li “Memórias Póstumas” já adulto e me encantei com a obra, escrita de uma forma que eu achava que pertencia apenas aos escritores contemporâneos. O livro é desconcertante desde o início, escrito por um morto que a dedica “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”.
A obra mostra alguns dos motivos por que Machado de Assis é considerado o maior escritor brasileiro, sendo fonte inesgotável de prazer e debates para seus leitores. Sua obra é um clássico, sempre aberta a novas e originais interpretações, não por sua observação certeira que nos faz entender o Brasil do século XIX mas, por nos permitir compreender melhor o Brasil do século XXI.
Machado de Assis é um escritor que faz, com ironia única, um retrato de nossos costumes e mazelas, entrelaçando a história do Brasil com o cotidiano de seus habitantes, contando, a meia-voz, “maneiras de amar e de compor ministérios” nas palavras de Carlos Drummond de Andrade. E, o casamento de conveniência, era visto por Cubas como a melhor forma de ascender na carreira política e chegar a ser ministro.
Quando “Memórias Póstumas de Brás Cubas” voltou a ser falado, não pude deixar de lembrar que o livro também nos fala do capacitismo entranhado em nossa sociedade. Para quem não está habituado com o termo, é o preconceito dirigido às pessoas com deficiência. Afinal, Brás Cubas se interessa por Eugênia, porém desiste de casar com ela quando descobre sua deficiência. Como diz o defunto-narrador, ao sair para a varanda, “foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:
— Não, senhor, sou coxa de nascença.”
Coxa, isso é, Eugênia mancava. Algo quase imperceptível, segundo Brás Cubas, mas o suficiente para fazê-lo abandonar a ideia de casar com ela. Pouco importam as qualidades que viu nela como a graça natural, ser bonita, com olhos pretos e tranquilos, um olhar direto e são e a boca fresca. A garota, mesmo com 16 anos, tinha uma compostura senhoril, entre outras qualidades que se esperavam de uma mulher naquela época, era singela, quieta e tinha as ideias claras. Porém, mancava, o que fazia com que Brás deixasse de lado todas as qualidades dela.
A ironia machadiana aparece desde o nome da menina-mulher: Eugênia. Na época em que a obra foi escrita, a eugenia era considerada uma ciência e seduzia boa parte da elite brasileira. Seus adeptos defendiam o “melhoramento da raça”, vendo a deficiência como um defeito e hierarquizando povos e raças, o que trazia justificativas “científicas” para o racismo. O grande projeto eugênico para o Brasil era o embranquecimento da população, assim como a pele negra de Machado de Assis sumiu de seus retratos, sendo o nosso gênio mostrado como se fosse uma pessoa branca. A recuperação da imagem real e negra de Machado ainda causa espanto.
“Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. Brás Cubas fala, lá do século XIX, algo que pode ser ouvido em nosso dia a dia, pessoas que ainda hoje acreditam que uma pessoa com deficiência não pode ser bonita. Para o pensamento preconceituoso capacitista, a deficiência torna a pessoa com deficiência feia, não atraente ou até mesmo destituída da possibilidade de desejar ou ser desejada, amar e ser amada. Como ainda pode ser ouvido: “que desperdício, tão bonita em uma cadeira de rodas”.
O narrador procura ocultar que o motivo para se afastar de Eugênia é o “defeito” dela, inventando uma mentira qualquer para se afastar, o que não engana o leitor atento. Embora sua postura seja cínica e desrespeitosa com a sua pretendente, procura contestar as “almas sensíveis” que assim o acusaram: “Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem.”
Mesmo em nossos dias, somos brindados com esse argumento para justificar o menosprezo e até a violência contra as mulheres.
Roberto Schwarz, crítico literário, dedica seu ensaio “O Sentido Histórico da Crueldade em Machado de Assis” aos breves capítulos que Eugênia aparece na obra. Diz o autor que esse é um dos momentos mais cruéis e grosseiros de Brás Cubas, um verdadeiro “festival de maldades”.
O flerte entre ele e Eugênia dá-se em um País desigual marcado por relações assimétricas. A sociedade em que se dá a trama tem os proprietários de terras no ápice da pirâmide social, possuindo e controlando acesso à riqueza e ao patrimônio social e cultural. Na base, uma multidão de pessoas escravizadas sendo exploradas e torturadas pela classe proprietária. Eugênia não está em nenhum dos dois pólos.
Sendo pobre em uma sociedade sem mercado de trabalho e, ainda, por cima, mulher e bastarda, sua única possibilidade de ascensão social era o casamento com alguém das classes abastadas. Como diz Schwarz, suas opções eram se tornar uma “senhora respeitável” ou resignar-se à pobreza. As consequências extremas entre as duas opções dão ao jovem rico um poder extraordinário, afinal, o valor e as possibilidades de uma pessoa pobre depende dos caprichos de algum rapaz casadouro ou de alguma família da classe dominante.
Neste emaranhado de esperanças e humilhações, “o menino rico a quem tudo é permitido” pode com tamanho poder nas mãos, de alçar alguém ao paraíso ou enviá-lo ao inferno. Como frisa Schwarz, “é claro que (o membro da classe proprietária) desenvolve um sentido exaltado de si e da própria relevância, que o faz brilhar em toda linha”. O autor anota que o principal motivo da rejeição de Eugênia por Brás é que essa não se comportou da maneira submissa e subalterna esperada de uma mulher em situação social inferior. Seu principal pecado foi mostrar dignidade e esperar ser tratada dessa forma.
Em uma relação extremamente desigual, as qualidades de alguém visto como inferior tornam-se defeitos na visão dos privilegiados da classe dominante, como o homem visto como confiante mas uma mulher é tida como arrogante. O homem é assertivo mas a mulher é agressiva, o homem é um líder, mas a mulher é controladora. A espontaneidade de Eugênia é um desafio ao rígido mundo oligárquico.
Ao ver Brás retornar à Corte, no Rio de Janeiro, Eugênia não protesta e luta pelo possível casamento e ascensão social, mas fica em silêncio, pois sabe qual é o seu lugar, como nos diz o crítico literário. A invisibilidade e o silenciamento é a resposta àqueles que ousam não se comportar da forma considerada adequada pela sociedade.
Voltando ao texto de Schvartz, Brás rejeita Eugênia por sua inferioridade social e, ao não satisfazer os caprichos de Brás, a deficiência física é o álibi para sua fuga apressada. Assim, o capacitismo se mostra de forma interseccional às questões de gênero e classe. Eugênia sofre as consequências por ser mulher, pobre e pessoa com deficiência.
O capacitismo de Brás Cubas se expressa na forma como ele usa a deficiência física para naturalizar a condição inferior de Eugênia e justificar seu desinteresse por ela. Culpa a deficiência e a pessoa com deficiência por seus próprios preconceitos, ao mesmo tempo em que sela seu destino subalterno e marginal. A sociedade que não abria espaço para a ascensão de mulheres, de pessoas pobres e de pessoas com deficiência era absolvida, a deficiência, condenada.
O capacitismo é apenas mais uma das facetas da personalidade arrivista de Brás Cubas que, como um influencer do século XXI, dedicou sua vida à busca de fama e dinheiro. Tentou conquistar isso pela política ou pelo casamento, mas acabou sem atingir suas pretensões. Porém, julga-se vitorioso, pois tampouco precisou trabalhar, ou, como ele mesmo diz, “coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto”. Por fim, fracassou em todas suas tentativas de casamento, como lamenta em seu leito de morte.
Quase ao fim do livro e de sua vida, ao se dirigir a um cortiço para distribuir esmolas, Brás depara-se com Eugênia, narrando assim o derradeiro encontro entre ambos:
“(Eugênia) Ergueu logo a cabeça, e fitou-me com muita dignidade. Compreendi que não receberia esmolas da minha algibeira, e estendi-lhe a mão, como faria à esposa de um capitalista.”
O dinheiro de Brás não comprou a própria dignidade ou a de Eugênia. Do alto de sua posição social, de membro da elite, preferiu ver a mulher como “coxa e triste”. Viu antes a deficiência e, somente depois, a pessoa. Nada mais capacitista, nada (lamentavelmente) mais atual.
Foto da Capa: Divulgação / Reginaldo Farias é Brás Cubas no filme de André Klotzel / 2001
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