Imagine o nobre leitor um relato que inicia mais ou menos dessa maneira: “Era uma vez uma bela princesa da casa da Áustria. Sua alteza era arquiduquesa e se chamava Maria Antonia. Estava noiva e prometida, mas apaixonou-se por um jovem pianista argentino, que tocara no castelo de Schönbrunn, chamado Don Luís. Obediente aos ditames da corte, ela não pôde aceitá-lo e casou com o noivo que também pertencia a nobreza. Precisou fugir da Áustria por causa da I Guerra Mundial e refugiou-se com a família junto a seu tio, o Rei da Espanha. Também lá não ficou, provavelmente porque o seu marido morrera na Guerra Civil. Foi para a Argentina, onde os deuses do amor jogaram em seus braços o belo pianista argentino que tinha virado arquiteto. Os dois casaram e mudaram-se para Porto Alegre, queriam ficar ricos construindo prédios. Não deu certo e Don Luís voltou a ser pianista, tocando em bares e cedo morreu. A princesa, viúva pela segunda vez, ficou ainda mais pobre. Abandonada pela família real, teve que catar comida no lixo do Mercado Público. Morreu de câncer em 1977, na Santa Casa de Misericórdia”.
Em Porto Alegre vive um excelente médico, escritor, ensaísta e, para minha sorte, meu amigo, o doutor Franklin Cunha. É dele a apresentação desse roteiro rocambolesco que inicia essa crônica e compõe o seu novo livro: Sua Alteza Imperial e Real Maria Antonia de Habsburgo Bourbon que morou e morreu em Porto Alegre. A obra, edição da Almedina, será lançada em breve.
Conheço-o há muito. Foi ele que idealizou a série Médicos (Pr)escrevem. Convidou ao Blau Souza e a mim e, logo em seguida, juntou-se a nós o José Eduardo Degrazia. Em sete volumes, com ineditismo, a coleção evidenciou a forte associação entre arte médica e literária.
Posicionamentos éticos, políticos e filosóficos aparecem nos textos do Franklin e explicam atitudes e fatos da sua trajetória também enquanto médico e cidadão. Um humanista. Mais, um genuíno erudito. Sem presunção, longe do pernosticismo tão comum entre pretensos luminares. Modesto, diz de si, um “carcamano”. Fidalgo, eu acrescento; e dono de um humor refinado.
Não posso deixar de citar a história a seguir, presente em um de seus livros, A lei primordial. A revelação de que a Luftwaffe ameaçou bombardear sua cidade natal, Antônio Prado. A última das colônias italianas criadas pelo Império Brasileiro, na margem direita do Rio das Antas. Uma das localidades mais bonitas da Serra Gaúcha e que quase desapareceu.
Franklin sabe que tenho minha própria teoria a respeito disso. Não teria sido sem razão ou por acaso que os maledetos nazistas colocaram Antônio Prado na mira de bombardeios. Antigos moradores da região podem atestar os blackouts, as janelas fechadas. Jantares festivos, passarinhadas e perdizes com polenta, somente à luz de velas. O filó encoberto; não por medo, mas precaução, bom senso. Na escuridão, – Mérica, Mérica – sussurrada à meia voz.
Os dados soam algo imprecisos, mas a coisa toda parece ter iniciado com algum informante de tendência fascista, que soubera por um caixeiro-viajante, que contara a outro, e outro mais, e rumores chegariam à distante Europa, onde Göring e o próprio Führer sentiram-se ameaçados.
O bambino que andava pelas ruas de paralelepípedos de pedra ferro, olhos fixos no céu e um bodoque de galho de goiabeira no bolso da calça, vinha sendo monitorado. Segundo as pitonisas do Terzo Reich, ele se tornaria escritor. De fortes tendências antitotalitárias. Motivo mais do que razoável – sigo convicto – para bombardear Antônio Prado.
Felizmente não chegaram a completar o intento. A derrota além-mar deu-se antes. A riqueza arquitetônica do casario de madeira da cidade mantém-se em pé. O menino Franklin segue escrevendo.
O guri agora desempenha um novo papel. A quixotesca ventura de resgatar princesas. A arquiduquesa Maria Antonia finalmente será reconhecida como personagem da história da nossa mui leal e valerosa cidade. Restam muitas outras figuras anônimas, esquecidas, de diferentes procedências e nobrezas variadas. Essa, ao menos, não precisará mais catar comida no lixo do Mercado Público.
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Foto da Capa: Ilustração do autor