Moro na rua São Carlos, em Porto Alegre. Há uns quatro anos, conduzidos pelo Jorge Piqué, formulador do conceito de Distrito Criativo para caracterizar a região da cidade em que vivo, pois há vários artistas, galerias de arte, produtoras de filme, o Centro Cultural Vila Flores, entre outros, fomos verificar a situação dos imóveis listados e dos tombados pelo patrimônio histórico.
A minha casa é listada. Percorremos toda a extensão da minha rua e alguns arredores. O conjunto de cinco casas em que a minha está incluída é de 1930. Foi construída pelo Comendador Azevedo. Sim, o que dá nome à rua que faz esquina com a quadra onde moro. São cinco casas feitas para renda da sua esposa, Dona Generosa. O Comendador foi um dos sócios da construtora Azevedo Moura e Gertum, que ergueu cerca de 853 obras na cidade. Aquele casario da Félix da Cunha, em frente ao Moinhos Shopping, é semelhante ao em que moro. A diferença é que ali todas as casas estão reformadas.
O passeio pra conferir a preservação ou não do patrimônio histórico mostrava já na aparência quando se tratava de uma casa antiga que certamente estaria listada. Os arquitetos e estudantes de arquitetura presentes apontavam também detalhes que revelavam épocas, estilos e a história das construções. Quando entra a narrativa sobre o material já começamos a entrar no patrimônio imaterial.
Digo isso tudo porque a recente demolição da casa onde viveu o escritor Caio Fernando Abreu parece ser um caso típico de não ter havido o reconhecimento e a valorização do patrimônio imaterial. Mesmo uma casa que não se enquadre visivelmente nos critérios de preservação pode conter um outro tipo de história que impeça a decisão de ser posta a baixo. Como canta o Djavan, “o que não se vê tá aí como tudo o que há”.
Passa pela cabeça de alguém um dia derrubar a casa onde Erico Verissimo viveu ali na Felipe de Oliveira? Sua casa em Cruz Alta é um museu. Caio é um autor fundamental para toda uma geração. É referência no país inteiro. “O ovo apunhalado”, seu livro de contos de 1975, é motivo para mim de constantes releituras. Permanece aberto sempre para novas descobertas.
Fazer um passeio pelo patrimônio imaterial da cidade é uma atividade que deveria ser realizada constantemente para evitar decisões equivocadas. Termino aqui com um poema do meu livro “O Menos Vendido”, editora Nankin, 2006:
há uma cidade por dentro
que percorre cada corpo
e aonde quer que se vá
ela vai junto
cidade dentro de outra cidade
é por isso que se diz minha
minha cidade
e sendo corpo
também dói e dá prazer
concreto abstrato
dissolvendo em lembrança
a argamassa
às vezes dói tanto
que se quer expelir
arrancar a cidade de dentro
mas é feita de tempo
matéria mais dura
que o cimento