Desde 23 de fevereiro, quando ainda estava em férias nas ex-colonilizadoras e ex-escravocratas Bélgica e Holanda, tenho acompanhado o caso dos trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves e cada vez fico mais estarrecido com a necessidade de evoluirmos como sociedade. Já queria ter escrito sobre isso na semana passada, mas estava a voltar e preferi processar melhor ao invés de falar no calor da indignação.
Como não poderia deixar de ser, a minha primeira reação foi contra a brutalidade de quem engana, oprime, espanca, assedia outro ser humano. E não são poucos os que fizeram isso.
Cada trabalhador foi abordado, entrevistado, contratado, transportado, alojado, alimentado, orientado, surrado, preso, perseguido por alguém. O dono da empresa terceirizada, seus funcionários, o responsável pela hospedagem, os trabalhadores das vinícolas e seus executivos. Todos tiveram diferentes oportunidades de acabar com a situação, mas optaram por manter tudo como estava.
Como alguém – sob ordens de outro ou não – pode espancar outra pessoa? Como um
“executivo” pode fechar os olhos para o que acontece dentro do seu próprio negócio? Qual a magia capaz de criar um cenário em que se gasta menos para um mesmo trabalho em que se agrega um atravessador no meio do processo?
Chego à triste conclusão de que isso não aconteceu porque ninguém ou pouca gente sabia. Aconteceu porque é “normal” que trabalhadores pretos e pobres sejam explorados. No Brasil em que 57 milhões de pessoas votam em Bolsonaro para acabar com a “mamata e a roubalheira” da esquerda (em Bento foram 75% dos eleitores), cada um tem seu lugar na sociedade e o dos mais humildes parece ser servir de escada para a meritocracia branca.
E é aí que entra a nossa necessidade de estudar mais. Vi vários jornalistas e articulistas usando equivocadamente o termo “trabalho escravo” em Bento Gonçalves. Isso apenas isenta os envolvidos, na medida em que ninguém viu nenhuma Cabana do Pai Tomás em meio aos parreirais gaúchos.
Como disse muito bem o historiador Fernando Horta (@FernandoHortaOf), no Twitter, as tipologias das formas de trabalho são históricas e cada uma tem peculiaridades que mostram como funcionavam as sociedades em que estavam inseridas. Por isso, servidão e escravidão são duas formas de trabalho compulsório, mas nem de longe são a mesma coisa.
Da mesma forma, o trabalho compulsório que temos no Brasil hoje não pode ser chamado de escravidão, mas sim de trabalho análogo à escravidão já que, apesar de não pago, não inclui a posse do trabalhador, para citar uma característica apenas. Pense bem: a legislação, assim como a maioria da sociedade, não aceitaria muito bem se a herdeira da Salton saísse por aí anunciando a venda de uma mucama. Ao menos, espero.
Ao fim e ao cabo, o brasileiro aceita um trabalhador negro ganhando uma ninharia, sendo hostilizado e humilhado pelo patrão, vivendo em uma casa insalubre e comendo restos porque não iguala isso à escravidão que viu nos livros escolares. Falta-nos a capacidade de reconhecer que o trabalho indigno de nosso tempo é outro, mas nem por isso menos aviltante.
E agora vem a meritocracia. Sem entender o mundo que os rodeia, os “ricos” herdeiros da Serra Gaúcha juram de pés juntos que são diretores de marketing, vice-presidentes e quetais aos 25 anos não por seus sobrenomes, mas porque “estudaram e se prepararam para o cargo”. Pois bem, se tivessem estudado mesmo, teriam visto um ou outro case de gestão de crise e saberiam que ou transformam verdadeiramente a sua compreensão de comum, de comunidade, param tudo agora, assumem a responsabilidade pelo que foi feito, não deixam o caso ser esquecido e “dão vale vinho grátis” para os baianos até o fim dos tempos ou serão para sempre os mimados que não entenderam, sequer, o conceito de storytelling.
E isso serve para todos, não apenas os envolvidos diretamente. Autoridades, entidades de classe, marcas e cidadãos autônomos precisam ter o mérito e compreender o significado do que ocorreu e iniciar a transformação necessária para banir de vez a escravidão moderna do Brasil.