O cerco fechou sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro, que finalmente pode ser envolvido diretamente como beneficiário do desvio de dinheiro com a venda ilegal de joias. O ministro A Alexandre de Moraes, do STF, afirma que investigações apontam a suspeita de que o ex-presidente utilizou a estrutura do governo federal para desviar presentes de alto valor oferecidos a ele por autoridades estrangeiras. As afirmações do ministro se baseiam em relatório da Polícia Federal e serviram de base para a decisão que autorizou operação deflagrada na última sexta-feira que cumpriu mandados de busca e apreensão em residências de pessoas relacionadas ao ex-presidente no caso das joias enviadas por autoridades sauditas. Foram o general da reserva do Exército Mauro Lourena Cid, pai do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, Frederick Wassef, advogado de Bolsonaro, e Osmar Crivelatti, tenente do Exército e que também atuou na ajudância de ordens da Presidência.
A investigação sobre as joias e presentes dados por autoridades de outros países a Jair Bolsonaro aponta as digitais do ex-presidente na suspeita de desvio de bens públicos para enriquecimento pessoal. A ação deflagrada pela Polícia Federal na sexta-feira (11), batizada de Lucas 12:2, dá início à reta final das apurações que podem resultar na acusação de Bolsonaro como líder de uma organização criminosa. Embora não tenha sido alvo das diligências, como foi o general Mauro Lourena Cid, pai do ajudante de ordens Mauro Cid, Bolsonaro teve pedido de quebra de seus sigilos e deve ser ouvido em breve pela Polícia Federal.
Para os investigadores envolvidos desde o início dos inquéritos relatados pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, dois pontos colocam o ex-presidente pela primeira vez na cena do crime de desvio de dinheiro público e enriquecimento ilícito no caso das milícias digitais. O primeiro é o uso da aeronave da Força Aérea Brasileira para levar as joias e presentes aos Estados Unidos. O segundo, as mensagens indicando o retorno do dinheiro oriundo de vendas, em espécie, para o bolso do ex-presidente. O segundo ponto ainda deve ser aprofundado, mas investigadores dizem não restar dúvida de como Bolsonaro participou de todo o estratagema.
A apuração partiu do inquérito das milícias digitais, que tem origem na investigação dos atos antidemocráticos de 2020. Após Augusto Aras, o procurador-geral indicado por Bolsonaro, pedir em 2021 o arquivamento do caso, Moraes ordenou a abertura de outra investigação, com o material angariado na apuração anterior. Nesse cenário, a então delegada titular do caso, Denisse Ribeiro, passou a organizar na investigação sobre milícias digitais toda a apuração sobre o entorno de Bolsonaro e seus aliados, iniciada anteriormente no inquérito da fake news.
No entendimento da delegada, a organização criminosa alvo da apuração era responsável por todos os eventos da escalada golpista, que tinham começado em 2020, passado pela campanha de desinformação durante a pandemia, e chegado a ataques ao sistema eleitoral. Denisse saiu da apuração no início de 2022 por causa de uma licença e deixou em seu lugar o delegado Fabio Shor.
O delegado deu prosseguimento à linha de investigação traçada por ela e, com as provas colhidas pela PF no caso das joias, em especial o uso da aeronave presidencial e o suposto recebimento dos valores proveniente da venda dos presentes, indica confirmar a tese da colega, de que Bolsonaro é líder de uma organização criminosa. Ao pedir as buscas contra o pai de Mauro Cid e outros alvos, o delegado lembrou da estrutura do inquérito das milícias digitais e das frentes de reunidas ao longo do tempo.
Moraes afirma que os dados analisados pela PF indicam a possibilidade de o órgão responsável pela análise e definição do destino de presentes oferecidos por autoridade estrangeira ao presidente da República, no caso o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência, “ter sido utilizado para desviar, para o acervo privado do ex-presidente da República, presentes de alto valor, mediante determinação de Jair Bolsonaro”. Apenas três itens supostamente desviados alcançam cerca de R$ 900 mil, nas contas da PF —cerca R$ 588 mil de um kit de joias com relógio da marca Chopard, que foi colocado à venda em uma leiloeira de Nova Iorque, mas que não chegou a ser comercializado, e R$ 333 mil de dois relógios, sendo um Rolex, que chegou a ser vendido mais depois foi recomprado para devolução ao patrimônio público. A PF aponta, diz Moraes, “indícios de que alguns presentes recebidos por Jair Messias Bolsonaro em razão do cargo teriam sido desviados sem sequer terem sido submetidos à avaliação do GADH/GPPR (o gabinete de documentação)”. Em um dos trechos, a PF descreve a existência de um áudio em que Mauro Cid relata a existência de US$ 25 mil (cerca de R$ 122 mil) em posse de seu pai, “possivelmente pertencentes a Jair Bolsonaro”.
“Na mensagem, Mauro Cid deixa evidenciado o receio de utilizar o sistema bancário formal para repassar o dinheiro ao ex-presidente e então sugere entregar os recursos em espécie, por meio de seu pai”, prossegue a PF. No áudio, Mauro Cid diz, de acordo com a transcrição: “Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que, que era melhor fazer com esse dinheiro levar em ‘cash’ aí. Meu pai estava querendo inclusive ir aí falar com o presidente (…) E aí ele poderia levar. Entregaria em mãos, mas também pode depositar na conta. (…) Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor, né?”
O ministro diz na decisão que as diligências realizadas indicam que Bolsonaro e sua equipe usaram avião presidencial em 30 de dezembro de 2022 para retirar do país bens de alto valor. Esses então foram desviados para os Estados Unidos e, na sequência, encaminhados para lojas especializadas em venda e leilão de objetos nas cidades americanas de Miami, Nova York e Willow Grove. A viagem ocorreu em 30 de dezembro, véspera de seu último dia de mandato, para assim evitar seguir o rito democrático de passar a faixa a seu sucessor eleito, o hoje presidente Lula.
As tentativas de leilão
A caixa de joias da grife Chopard dadas a Jair Bolsonaro pela Arábia Saudita não foi comprada durante leilão realizado em fevereiro de 2023 e forçou assessores do ex-presidente a mudar planos para venda dos itens de luxo. A Fortuna Auction, localizada em Nova York, disse que não houve interessados no conjunto que inclui relógio, caneta, abotoaduras, anel e um tipo de rosário. A loja afirmou que não foi procurada por autoridades brasileiras. Os itens foram devolvidos após o leilão.
O leilão foi realizado em 8 de fevereiro. A caixa havia sido destaque no catálogo do dia dos namorados da loja, publicado em 30 de janeiro, com preço estimado de US$ 120 mil a US$ 140 mil. Para a loja, os produtos valeriam de R$ 611 mil a R$ 713 mil, conforme cotação da época.
A Polícia Federal fez uma operação de busca e apreensão na última sexta-feira dentro da investigação que apura se foram desviados “bens de alto valor” entregues por autoridades estrangeiras em missões oficiais a representantes de estado, “por meio da venda desses itens no exterior”, segundo nota do órgão. A apuração da PF mostra que o tenente-coronel Mauro Cid, ex-chefe dos ajudantes de ordem de Bolsonaro, enviou mensagem a um funcionário da Fortuna após o leilão. “Olá. E agora? Ninguém comprou o kit (conjunto)”, afirmou Cid em 8 de fevereiro, no texto traduzido pela polícia.
O Chopard L.U.C Tourbillon Qualité Fleurier, relógio que assessores de Bolsonaro tentaram vender, tem apenas 25 unidades produzidas. A loja informou que o número de série do produto é único. Esse número está registrado em certificado da Chopard sobre o produto, documento que está entre os e-mails de Cid entregues à CPI do 8 de janeiro. Nos dias seguintes ao leilão, Cid e Marcelo Câmara, outro assessor de Bolsonaro, passam a avaliar se era necessário ou não avisar o setor de documentação da Presidência sobre a tentativa de venda dos presentes entregues ao ex-mandatário. O ex-chefe dos ajudantes de ordem de Bolsonaro considerou avisar o governo e tentar novamente vender o item.
“Eu prefiro não informar pra não gerar estresse entendeu? Já que não conseguiu vender, a gente guarda. E aí depois tenta vender em uma próxima oportunidade”, afirma Câmara, segundo as mensagens obtidas pela PF. “Só dá pena porque estamos falando de 120 mil dólares / Hahaaahaahah”, responde Cid. Segundo a investigação, Câmara concorda, mas diz a Cid: “O problema é depois justificar e para onde foi. De eu informar para a comissão da verdade. Rapidamente vai vazar”. Para a PF, as mensagens mostram que havia um esquema para viabilizar o enriquecimento ilícito de Bolsonaro. O plano era incorporar ao acervo privado de Bolsonaro itens de grande valor recebidos de autoridades estrangeiras, e depois vendê-los.
Foto da Capa: Jair Bolsonaro e o príncipe saudita Mohamed bin Salman, durante encontro na cúpula do G20 no Japão, em 2019 — Alan Santos/PR