…e na Sua infinita bondade, Deus (e mais a terra e seus bichos) há de preservar estes meus olhos para que eu possa ver todos os tortos, os desviados, os oblíquos que de mim foram contemporâneos. E ver, sobretudo, o espanto com que encaram o inesperado destino de terminarem naquele “Céu”.
– “Fulaninho, você por aqui? Eu jamais poderia imaginar…”
-“Pois é, brayner (perde-se a maiúscula entre os oblíquos), houve um lamentável engano: repilo as acusações e já entrei com um mandado de segurança para revisão de meu processo. Uma inominável injustiça”.
E de oblíquo em oblíquo, lá iria eu encontrando todos aqueles que encontrei em vida, quer dizer, na Terra dos Certos e Convictos: os libertadores dos oprimidos, os pedagogos da consciência, os estilistas da existência, os cuidadores de si, os gênios da meritocracia, os críticos da alienação, os fautores da excelência, os próceres dos resultados, os paladinos do ranqueamento, os dialetas, os revolucionários, os produtores de conhecimento…, todos reunidos naquele setor do Céu, onde – curiosamente – só entram professores universitários.
Deliciar-me-ia em constatar a existência, mesmo no além, de uma mesma linguagem, uma mesma estética do falar semelhante àquela que ouvimos dos políticos corruptos flagrados em pleno ilícito, como já assinalei aqui mesmo na Sler: “trata-se de uma armação”, “só me pronunciarei após o acesso aos autos”, “exijo uma apuração rigorosa, doa a quem doer”, “sou inocente e vou prová-lo no momento oportuno”, frases que constituem uma verdadeira estilística em que as palavras (manancial de ledos enganos) adiam para daqui a pouco a justiça que os redimirá. Com a diferença de que, entre a esquerda, a justiça não está nos tribunais da consciência (todos burgueses), mas no da “história”: “só a História poderá me julgar!”, dizia Fidel Castro no julgamento sobre o assalto ao quartel de Móncada. E a única punição pelos seus erros intelectuais – alguns com milhões de mortos – é a célebre “superação”, que toda dialética promete. Compreende-se porque Schopenhauer achava que o charlatanismo na filosofia europeia fora introduzido por Hegel!
Constataria, finalmente, que o lado bom de ser intelectual, aquele que propõe mundos novos, transvaloração de valores, homens novos, visões de mundo renovadas, estéticas da existência, ressignificações…, intelectual que arrasta convictos, filia epígonos, obtém adesões ideológicas, alista prosélitos, arregimenta militantes, o lado bom, repito, é que ele raramente precisa pagar o preço terreno das consequências de suas convicções: são os outros que pagam. Os mortos do stalinismo não voltarão, e os stalinistas de ontem apenas se converteram ao liberalismo rasteiro de hoje; os revolucionários da juventude fazem juras de amor ao mercado de hoje; os fascistas do ano passado são os neoliberais de agora. E os neoliberais se mostram com uma clara vocação fascista: no fundo, um retorno às origens.
Assim, quando Deus, em sua infinita sabedoria, os coloca no Céu dos Oblíquos, Ele sabe o que faz. Resta, para aqueles que “não sabem o que fazem”, uma pergunta que aprendi lendo o belo livro de Pascal Mercier (“Trem noturno para Lisboa”): e se pudéssemos, hipoteticamente, voltar àquele ponto decisivo de nossas vidas, onde tivemos que escolher um caminho, voltaríamos a escolher o mesmo? Ou, em outras palavras, onde é que uma biografia começa a desandar? Gosto dessa onisciência divina, que condena as consciências esclarecidas de agora ao céu dos tortos, um lugar que obriga a todos a formular a questão acima. E a passarem o resto da eternidade a lamentar a vida que poderiam ter tido.
– “brayner, você por aqui!!?”.
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Foto da Capa: Gerada por IA