Não pensem que é exagero. Entreguem-se numa manhã ou fim da tarde à contemplação de um portal do paraíso. Ele existe no litoral do Rio Grande do Sul. Não é o único, mas o encontro das águas do rio com o mar, entre Tramandaí e Imbé, é nada menos do que magnífico.
Não bastasse a geografia, o capricho das alvoradas e do pôr do sol, a natureza se impõe num detalhe. A integração mágica dos pescadores com os botos. Os pescadores na água, até a cintura. O boto localiza o cardume de tainhas e o conduz até próximo a eles, alerta para o tarrafeiro. A boa pesca está garantida a ambos. Uma cooperação entre humanos e cetáceos que instiga. Sublime a constatação de que há, de fato, sinais de vida inteligente na Terra.
Início da década de 90, século passado. Olhos de Guia, conto meu escrito especialmente para um concurso, foi premiado. A história de um guri que presta ajuda a Garibaldi, indicando caminhos na passagem dos lanchões por terra e pela Barra do Tramandaí. Uma epopeia. Serviu de título para a minha primeira antologia; por ela recebi os prêmios literários Henrique Bertaso e Açorianos.
O concurso “Os botos do Rio Tramandaí” aconteceu por iniciativa do sociólogo, escritor, poeta Assis Aymone. Ele dirigia o Departamento Municipal de Cultura e Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de Tramandaí. Contou com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As obras premiadas foram publicadas em um livro homônimo, em 1992.
Na apresentação do livro, Assis Aymone justifica: “Os botos do Rio Tramandaí foram escolhidos como símbolo da luta em defesa dos ecossistemas: estuarial, terrestre e marinho, que apresenta a região do litoral norte. Constituem-se, assim, em um fenômeno raro de integração ao meio, já que não é comum a espécie possuir um habitat permanente.”
Além da modalidade literária, o concurso premiou também um trabalho científico. Uma pesquisa do oceanógrafo Luiz Tabajara: Aspectos da Relação Pescador-Boto-Tainha. Entre outros dados acadêmicos, somos apresentados, com descrição e fotografias, a nove botos existentes à época: Catatau, Bagrinho, Coquinho, Geraldão, Galhamol, Manchada, Pomba, Barata e Lobisomem.
Gerações de humanos e botos mantêm suas relações, nominalmente. Hoje vivem no local cerca de 15 animais. Os atuais pescadores referem-se com familiaridade à matriarca Geraldona e a seus filhos: Rubinha, Chiquinho, Flechinha, Ligeirinho e Furacão. Geraldona tem três netos.
Os botos-de-Lahille estão ameaçados de extinção. A espécie, Tursiops gephyreus, é reconhecida há poucos anos e famosa por essa singular interação com humanos. Segundo o professor Ignácio Moreno, coordenador do Projeto Botos da Barra, não se sabe quando a prática da pesca colaborativa entre pescadores e botos iniciou e ela ainda incita a ciência. Essa prática só é conhecida no sul do Brasil (Tramandaí, Mampituba, costa de Santa Catarina) e em Mianmar, no Sudeste Asiático, com outra espécie.
Por todas as razões, mas em especial pelos botos (em risco ainda mais iminente), saúdo a importância de nós, “humanos”, tentarmos aprender com esse espírito de colaboração.
Está marcada para 10 de fevereiro de 2025, em Tramandaí, uma Audiência Pública Estadual. Convocada pelo Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte Gaúcho – MOV. Visa discutir irregularidades no processo de autorização do despejo de afluentes de esgoto no canal lagunar, popularmente conhecido como Rio Tramandaí.
Formado por um corpo técnico de engenheiros, pescadores, advogados, geógrafos, biólogos, professores e estudantes, o MOV questiona a forma como foi conduzido o Termo de Ajuste de Conduta. Assinado pelo Ministério Público Federal e pela FEPAM, permitiu que uma tubulação de nove quilômetros de extensão fosse construída unicamente para despejar efluentes de esgoto, provenientes de condomínios fechados e dos centros urbanos de Capão da Canoa e Xangri-lá, no Rio Tramandaí. Em local próximo a uma colônia de pescadores artesanais tradicionais e de uma aldeia indígena.
Os proponentes reforçam que a decisão foi tomada de forma irregular e autoritária, sem realização de audiências prévias. Além do risco imediato ao ecossistema local, a degradação ambiental afetará atividades econômicas e turísticas dos municípios de Imbé e Tramandaí.
Retornando ao final da apresentação do livro que resultou do histórico concurso, Assis Aymone conclui: “Os botos do Rio Tramandaí constituem um sinal perdido nas brumas do tempo, que talvez possa indicar o caminho do reencontro”.
Em meio a essa era de dúvidas, abusos e criminosa negligência ambiental, desejo que ele esteja certo. A preservação desse exemplo de interação entre pescadores e botos, metáfora de uma existência harmônica entre homens e natureza, pode ser um chamado.
Todos os textos de Fernando Neubarth estão AQUI.
Foto da Capa: Projeto Botos da Barra