Tem um trecho da canção “Muito”, do Caetano Veloso, que sempre vem à minha lembrança quando conheço novas pessoas interessantes: “mas eu nunca pensei/que houvesse tanto/coração brilhando/no peito do mundo louco”. É que a gente seguidamente decreta para si mesmo que já tem os amigos de que precisa, que já conhece gente o suficiente.
Mas eis que surgem outras pessoas legais e nos mostram, como na canção do Caetano, que há mais corações brilhando. Digo isso porque conheci, quando fiz o meu mestrado em Letras, na UFRGS, de 2017 a 2020, o professor de literatura japonesa e tradutor Andrei Cunha.
Um dos primeiros pontos altos desse encontro foi numa disciplina sobre tradução literária. Era ministrada por quatro professores tradutores: Denise Regina de Sales, de russo, Leonardo Antunes, de grego, Karina Lucena, de espanhol, e o Andrei, de japonês. Todos excelentes pessoas, mais corações no peito do mundo, e cheios de visões e conteúdos que me deram estofo e me encorajaram a colocar na roda posteriormente meus dois livros de tradução de poesia: Isso não é arte – haicais de Kobayashi Issa, e Festas Galantes, do Paul Verlaine, ambos pela editora Bestiário.
Minha afinidade com o Andrei Cunha se deu também por termos uma longa relação com a poesia japonesa. Eu já lancei três livros com meus haicais. E o Andrei, com seu trabalho de tradução, está fazendo um enorme serviço para a ampliação do conhecimento e do repertório de leituras, em língua portuguesa, da poesia japonesa.
Resgatando as principais antologias da história do Japão, Andrei Cunha coloca em evidência o tanka, uma forma poética com cinco versos, dois a mais do que o haicai. Mostra também as diferenças entre as duas formas, com o tanka possibilitando a presença da subjetividade, do amor, das paisagens interiores, em contraste com a objetividade do haicai.
Ambas são formas de textos poéticos curtos, para falar das semelhanças. A passagem das estações, sugerir mais do que dizer, a referência a outros poemas da tradição, tudo isso também os une como partes de uma arte poética macro japonesa.
Agora, Andrei Cunha nos traz o novo livro Poemas do Japão Medieval – seleções do Shinkokin’wakashû. Trata-se de poemas extraídos de uma das três grandes coletâneas da língua japonesa. Essa é do século XIII. Foi encomendada pelo ex-imperador Gotoba (1180-1239). Ele deu como missão a seis destacados poetas do seu tempo que fizessem uma nova antologia da poesia japonesa, trazendo os clássicos e os contemporâneos ao período em que viviam.
A ação fazia parte de uma política cultural que contou com a restituição do Departamento Imperial de Poesia e a promoção de muitos concursos poéticos. A poesia do tempo de Gotoba buscava uma espécie de charme sutil, com uma dicção que valoriza mais a ambiguidade, a criação de atmosferas misteriosas, em contraste aos poemas com linguagem mais direta do passado.
Andrei, como nos títulos anteriores que publicou (procure-os no site da editora Bestiário), escreve estudos introdutórios com linguagem que nos aproxima com naturalidade dos temas tratados. E ainda criou, mais uma vez, um delicioso projeto gráfico, com ilustrações de época, além de uma diagramação que favorece a leitura do poema, acompanhada da grafia em japonês e de comentários que se integram de maneira totalmente harmônica.
Dois poemas de duas poetas:
nem meu travesseiro
desconfia de nós
não conte a ninguém
de nosso encontro em sonho
em uma noite de primavera
Izumi Shikibu
as chuvas de verão
cessaram e o céu
está limpo e enluarado
segue meu rosto chuvoso
sem previsão de bom tempo
Akazome Emon
Corações brilhando há séculos, no peito do mundo louco, no Japão, trazidos de volta pelo Andrei Cunha.