É impossível ser um leitor de fato sem desenvolver alguns cacoetes e preferências na sua relação com os livros. Escrevo profissionalmente sobre livros há mais de duas décadas, e os compro e frequento por hábito há bem mais tempo do que isso, então tenho eu cá minhas manias de leitor, que nem todo mundo.
O que posso apontar como peculiar no meu caso específico é que a proximidade de tantos anos com o setor editorial como um mercado e um ofício me fizeram desenvolver um fascínio e uma curiosidade enormes sobre o modo pelo qual o trabalho de uma editora organiza em um livro aquilo que academicamente se chama pelo nome vagamente pernóstico de “elementos paratextuais”, e que pode ser traduzido como “tudo o que não é o texto principal”. Ou seja: desde o título até índice, texto da orelha, notas, bibliografia, etc – existe, para que vocês saibam, toda uma outra discussão acadêmica separando os elementos que fazem parte do próprio texto daqueles que são SOBRE o texto, mas isso é para a academia, um lugar em que, como me disse certa vez uma professora universitária (sem um pingo de ironia aparente), o pessoal perde a vergonha de ser chato.
O que me fascina nos, vá lá, “paratextos” é o aspecto pragmático desse tipo de organização, porque, no fim das contas, estamos, com essa palavra meio metida a besta, nomeando escolhas tomadas durante o processo de preparação e edição de um livro que vão decididamente interferir na experiência de leitura, estejam os editores conscientes disso ou não. Você pode achar que não é o seu caso ou que eu estou simplesmente dedicando tempo demais pensando em filigranas (nessa parte você provavelmente está certo), mas é só pensar como qualquer decisão editorial ecoa na forma como você vai desfrutar do livro. Basta lembrar dos exemplos mais simples possíveis: as notas devem ir no pé da página ou no fim do livro? É melhor um prefácio ou um posfácio? É realmente necessária uma introdução? Quem devemos escolher para escrevê-la? O índice, quando necessário, deve ir no início ou no fim do livro? Colocar ou não uma epígrafe (essa é, de todas essas escolhas precedentes, aquela que mais diz respeito ao autor do que ao editor, e é normalmente decidida por ele já no momento da escrita)?
CIRCUNSTÂNCIAS
Isso, claro, não influi no teor da obra e, em tese, em sua qualidade, mas o fato é que o livro é uma experiência individual do leitor mais influenciada por fatores externos do que muita gente gostaria de admitir. Há épocas em que você está no quinto dia de uma semana de crise de insônia. Ou com problemas em casa. Ou brigou com o chefe, ou está preocupado com as perspectivas de viver num país em que se anunciam golpes de estado por antecipação a cada cinco dias. O reconhecimento desse conjunto de circunstâncias, aliás, é o mote por trás da deliciosa coluna que o romancista inglês Nick Hornby escrevia na publicação mensal americana The Believer – isso, claro, na época em que a revista era publicada pelo selo independente McSweeney, do escritor Dave Eggers, o autor de O Círculo, e não havia sido repassada para um conglomerado de mídia digital que a fez morrer a mais horrível das mortes: virar um buzzfeed.
Mas divaguei. O que eu dizia é que, todo mês, Hornby comentava em sua coluna não apenas os livros que lia, mas o quanto as circunstâncias de sua própria vida influenciavam em sua apreciação da narrativa ou mesmo na sua capacidade de ler uma obra até o fim, dado que ele tinha um bebê pequeno em casa na época. Parte desse material foi lançado, aliás, em português numa coletânea pela Rocco, Frenesi Polissilábico. Logo, se esse tipo de detalhe afeta a experiência de leitura, então por que as manias que um leitor desenvolve em sua relação com o livro enquanto objeto, enquanto um volume impresso ou um arquivo digital legítimo ou “alternativo” também não a afetariam?
Como em quase tudo, não há, claro, uma única resposta para que tipo de manias de leitor uma editora precisa visar ao produzir um livro. Não há regras, o que determina é o hábito do editor, o padrão estabelecido ao longo dos anos por uma editora e a forma como ambos conhecem e reconhecem seu público, porque cada leitor terá uma resposta diferente a um padrão diferente. O que resta é haver a intenção de fazer de um livro a melhor versão possível de si mesmo dentro das circunstâncias – e acreditem, é bem fácil distinguir quando essa intenção está ausente, mas esse é um tópico para outra coluna.
PADRÕES
Ah, sim: como o único padrão de manias que conheço em profundidade é o meu próprio, acho apropriado encerrar este texto dividindo-as com vocês:
* NOTAS – Não gosto de notas no fim do livro, principalmente no caso de um tijolo como Graça Infinita, por exemplo, em que as notas são essenciais e estão todas, na edição da Companhia das Letras, lá a partir da página mil, te fazendo andar para cima e para baixo com aquele paralelepípedo de construção com dois marcadores de textos no meio das páginas, um para o ponto em que você está na leitura, outro para o ponto em que você está nas notas. Prefiro que elas sejam, como o nome mais comum já apresenta, notas de rodapé.
Ao mesmo tempo, tendo lido Graça Infinita mais de uma vez a esta altura da vida, acho que estou sendo obtuso em usá-lo como exemplo, já que é um caso único de um livro com notas tão extensas que, se fossem de fato parar no rodapé, talvez ocupassem cinco ou seis páginas antes de devolver o espaço à narrativa regular.
* EPÍGRAFES – Gosto, desde que na medida certa. Para a página de rosto, até três me parecem ok. Mais do que isso, fica-se com a impressão de estar lidando não com um livro, mas com o caderno de um adolescente que copia citações de livros. Se cada capítulo terá uma epígrafe, seria interessante que eles fossem longos o bastante para que não aparecesse uma nova epígrafe a cada cinco páginas, isso pode se tornar BEM irritante, como no caso de um romance publicado há uns anos por uma autora brasileira cujo nome não direi. Era uma história de amor entre um homem e uma mulher, com capítulos curtos alternados, apresentados pelo ponto de vista dele e dela. E CADA UM começava com uma epígrafe. Depois de 20 páginas eu já nem conseguia prestar atenção no enredo.
O que acho interessante na epígrafe é que ela é uma das pistas iniciais mais preciosas que um autor pode dar ao leitor não sobre o sentido de sua obra, mas sobre os processos e conexões mentais que o levaram a escrevê-la, dado que estamos testemunhando ali o autor fazer entre a sua obra e aquela citação um jogo de associações que pode ser muito aberto ou muito elíptico.
* PREFÁCIOS – Antes eu não tinha nada contra. Hoje meio que detesto. Não os leio a não ser após a conclusão da obra. Vale o mesmo para as famigeradas introduções. De modo geral, prefácios são uma enrolação de duas ou três páginas que não dizem nada de fato relevante. Introduções são enrolações de no mínimo 15 páginas que não chegam a dizer nada de absolutamente relevante a não ser para a academia, onde é norma citar copiosamente o que autores dizem em introduções e prefácios de suas grandes obras, quase tanto quanto citar o que o livro de fato diz.
Sou, então, por princípio, mais favorável a posfácios. E é o único caso desta lista em que penso que todo mundo deveria concordar comigo. Não por mim mesmo, mas porque aqui eu estou concordando com Borges, que após Ficções, só escreveu sobre seus livros posfácios. Se está bom para ele, que queixa EU teria?