A democracia é boa por isso: garante o direito de crítica até aos cínicos que a atacam. Nestas quatro décadas, completadas no dia 15, de eleições a cada dois anos, de plena liberdade de imprensa, acho que não se viu maior demonstração de cinismo e de negação de responsabilidade como no discurso de ex-presidente Jair Bolsonaro na manifestação promovida pelo pastor Silas Malafaia em Copacabana.
Inelegível e provável réu no STF, acusado dos crimes de tentativa de abolição do estado democrático de direito, golpe de estado e organização criminosa, Bolsonaro pronunciou a seguinte pérola, imaginando que defendia os golpistas de 8 de janeiro de 2023, segundo matéria publicada no G1 em trecho que replico aqui, na íntegra:
“Eu jamais esperava um dia estar lutando por anistia de pessoas de bem, de pessoas que não cometeram nenhum ato de maldade, que não tinham intenção, e nem poder pra fazer aquilo que estão sendo acusados”, disse o ex-presidente. Ele mencionou o nome de algumas das mulheres condenadas e questionou os crimes imputados a elas. “Quem foi a liderança dessas pessoas? Não tiveram. Foram atraídas pra uma armadilha.”
Lindo, não? E, no mínimo, um pouco contraditório… Em poucos segundos, ele diz que defende os condenados, mas foge da raia ao negar a existência de uma liderança e deixa subentendido que a coisa, agora, é cada um por si…
Onde ficou o corajoso capitão reformado que passou quatro anos dizendo diretamente aos eleitores e até a embaixadores acreditados aqui que as eleições no Brasil são fraudadas? Cadê o grande líder cultuado nos acampamentos em frente a quartéis do Exército e em outras manifestações?
Se não pensavam nele, Bolsonaro, em quem pensavam os golpistas do 8 de janeiro? Quem aquela turba imaginava assumindo o poder no lugar de Lula? O pastor Silas Malafaia, patrocinador da manifestação deste 16 de março e várias outras, ou o capitão derrotado nas urnas que ele mesmo atacava?
Bolsonaro parece esquecer – quando diz que ninguém liderava os golpistas de janeiro de 23 – todas as manifestações que fez contestando a lisura da eleição. A última delas, dois dias depois dos atentados na Praça dos Três Poderes, quando fez uma live afirmando que Lula não fora eleito pelo povo, mas, sim, escolhido pelo TSE.
Nesta altura, os condenados pelo 8 de janeiro, seguidores fiéis do bolsonarismo, devem estar lembrados de que abandonar aliados que ficaram incômodos não é novidade no currículo do ex-capitão.
O primeiro deixado pelo caminho foi Gustavo Bebiano, presidente do partido de Bolsonaro na eleição em 2018 e ministro da Secretaria Geral da Presidência da República. Bebiano ousou discordar do capitão. Dizia que ele era autoritário e que abandonara promessas de campanha para beneficiar os filhos. Queimado por Carlos Bolsonaro, Bebiano não ficou dois meses no cargo.
Outro jogado ao mar, também com um empurrão de Carlos Bolsonaro, foi o general Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo. O general foi demitido depois de defender em entrevistas a necessidade de regulação das redes sociais para que elas não caiam em mãos de grupos radicais. Carlos é o homem das redes sociais do pai…
Outra bolsonarista raiz abandonada é a ex-deputada Joyce Hasselmann. Depois de discordar de algumas decisões do PSL, partido ao qual era filiada, Joyce passou a ser atacada pela família Bolsonaro e teve que ir à Justiça e pedir desfiliação por justa causa. Em 2018, Joyce foi a deputada federal mais votada em São Paulo. Depois das rusgas com o bolsonarismo, não conseguiu se eleger, nem vereadora em 2022.
Com esse currículo de relações com aliados, será que os condenados pelo 8 de janeiro e os companheiros citados na denúncia da PGR, a ser analisada pelo STF no próximo dia 25, podem esperar mais do que discursos do ex-presidente em manifestações patrocinadas por Silas Malafaia?
Será que Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado e outros da direita estão dispostos a caminhar abraçados com Bolsonaro e ajudar na luta pela absolvição e anistia dele? Afinal, quando se trata de disputa de poder, o capitão diz que ele é o plano A,B,C… e quantos forem necessários…
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Foto da Capa: Gilberto Costa / Agência Brasil