Acho que o meu ponto de corte foi o TikTok.
Sempre fui alguém interessado em tudo o que surgia na internet. Assim que aparecia algum serviço ou rede social nova, eu corria pra me inscrever. Foi assim com o Orkut, com o Facebook, com a Netflix e com o Spotify, entre tantos outros.
Demorei mais pra entrar no Instagram – eu não entendia muito bem o que fazer com uma rede social só de imagens. Mesmo assim, dei meu braço a torcer e passei a usar mais, especialmente quando começou a ficar evidente que aquela era a rede que se tornaria o veículo privilegiado para estar em contato com quem gosto e para divulgar o que escrevo.
Mesmo assim, relutei bastante a me entregar pra lógica do Instagram. Nunca tive lá muito receio de exposição, até porque realmente acho que a avalanche de conteúdo nos torna insignificantes, mesmo que publiquemos fotos de nossa vida privada. É muita pretensão achar que realmente vai ter alguém tão interessado em nós a ponto de termos que nos esconder.
Mesmo sendo psicanalista, nunca me incomodou que as pessoas soubessem uma coisa ou outra da minha vida. Além de sempre termos controle do que vai ser publicizado, acredito que já não faz tanto sentido essa ideia de que um terapeuta deva ser alguém fora do mundo, recluso junto aos seus livros empoeirados e ensimesmado em sua pretensa erudição. Aliás, essa cena parece até meio brega.
Se tem algo que os meus anos de clínica me ensinaram é que é dever de um psicanalista estar atento ao mundo em volta, e isso não só de forma intelectual: é preciso estar no mundo, e não vê-lo desde fora.
Sempre lembro de um amigo que, no começo dos anos 2000, me disse que se sentia um tanto incomodado que seu psicanalista não sabia o que era um iPod. Claro que acompanhar por onde andam as novidades tecnológicas não faz de ninguém um melhor terapeuta, mas achei a preocupação do meu conhecido bastante válida: é preciso mesmo que um psicanalista esteja a par das questões emergentes de seu tempo para poder estar próximo daquilo que produz sofrimento em seus pacientes – e em si mesmo.
O mesmo vale para a produções culturais. Claro que não acho que alguém deva assistir a todos os filmes ou estar atualizado de todas as séries – quem teria tempo pra isso, aliás? Mesmo assim, é importante ter em mente que falamos muito de nós através dos personagens que lemos e assistimos. Afora isso, sobretudo é de se levar em conta que os produtos da cultura têm a capacidade de interpretar aquilo que está latente no discurso social.
Os clássicos, como nos ensina Ítalo Calvino, sempre têm algo mais a dizer. Ler Machado de Assis, Shakespeare, assistir a Cidadão Kane ou a Casablanca certamente nos ajuda a termos uma noção daquilo que é crônico na sociedade. Nós ainda sofremos como Hamlet e nos emocionamos quando revemos Rick dizer a Ilsa que sempre teremos Paris. Estes personagens dizem de algo que nos é essencial, que forma a nossa humanidade.
Mas a nossa aventura no mundo não se esgota naquilo que de nós é atemporal. Arrisco a dizer que entendemos mais sobre relacionamentos hoje em dia assistindo ao Túnel do Amor do que ao lermos Romeu e Julieta. Sempre bom sabermos o caminho de volta pelas migalhas de pão deixadas no chão, mas há que se cuidar pra não nos acostumarmos demais à ideia de que aquilo que é verdadeiro só se apresenta no retorno.
Se os clássicos nos falam de algo imortal, a cultura pop nos assegura que nós também somos feitos daquilo que é perecível e fugaz. Muitos de nós adoraríamos a catarse de um momento de fúria à la Ivan Karamázov com seu machado em riste, mas está bem nos contentarmos com a redenção suicida de Walter White.
Somos cronicamente humanos, mas somos afetados pelo presente de forma aguda.
Parece haver uma espécie de ideal de pureza naqueles que só olham pra trás. Como se ser ativo em uma rede social, por exemplo, fosse uma espécie de queda do paraíso – que nunca existiu, diga-se de passagem. Mas em tempos hiperconectados como os que vivemos, não existe mais um fora das redes. Ninguém mais consegue estar completamente ausente do mundo digital – então é melhor olharmos de perto para todas as abas que temos abertas para sabermos onde estamos nos metendo.
Ou seja: não adianta só dizermos que o mal todo está nas redes sociais. Isso é pensamento mágico, até porque a lógica das redes não está fora do mundo concreto: ela organiza e desorganiza os nossos modos de viver.
Ou não é curioso vermos os participantes do Big Brother dançando meio endurecidos, como se estivessem contornados pelas margens de uma tela? Quando o próprio corpo é recortado pelo discurso das redes – a dança robótica para aparecer no TikTok, como neste exemplo -, estamos frente à constatação de que a distinção real/virtual já não faz tanto sentido.
Algo que parece cada mais evidente é que as redes sociais impõem ao mundo uma linguagem própria. Melhor dizendo: um código. Isso é bem fácil de entender: experimente reagir com um “foguinho” a uma selfie de um conhecido ou de uma amiga e mostrar isso ao seu parceiro ou parceira.
Há um código em que todos nós estamos imersos, mesmo que não o saibamos – como acontece com todas as linguagens que tecem o laço social. O quanto nós nos tornamos fluentes neste código também nos diz do quão alienados estamos a ele. Ironicamente, talvez os mais alérgicos às redes sociais sejam os que reproduzem de forma mais categórica os imperativos desta linguagem que tanta questão fazem de ignorar.
Neste sentido, sinto que eu também acabo fazendo uma escolha pela alienação quando decido não entrar para o mundo do TikTok. Tudo bem, nem todo código precisa ser investigado e decifrado. O que me parece razoável, entretanto, é não fazer dessa alienação voluntária um estandarte narcísico de glorificação da nostalgia.