Eram tranquilas as alvoradas da pequena comunidade de Linha Cristina, município de Caxias do Sul. As primeiras luzes do sol dançavam sobre as águas serenas do rio que serpenteava ao redor da casa onde meu pai morou um quarto dos dias de sua existência. Foi lá, na beira do rio Caí, que a vida floresceu e se entrelaçou com a correnteza, moldando os destinos de sua vida e a de muitas outras. No homem, hoje nonagenário, que mora em outro lugar há sessenta e sete anos, aquele curso de água ainda está entranhado nas carnes, como uma artéria vital que irriga as lembranças dos sonhos pueris e das tradições de família.
A importância do rio Caí, em suas recordações, transcende a mera provisão de água: era o tecido que unia os corações e as histórias de todos os habitantes da localidade. Ainda agora, ele corre vivo nas suas memórias, nunca deixou de ser o exuberante fluxo de águas que cortava a montanha ao meio, dividindo a mata nativa, e nutria a vegetação da várzea no vale onde nasceu. Para o menino de sete anos que era na enchente histórica de 1941 em nosso estado, da qual ele apenas ouviu histórias, não ficou outra marca a não ser a linha alta e marrom nas paredes da casa da menina de seis anos, que se uniria a ele em núpcias aos dezenove. Esta marca, exaltada reiteradas vezes, falava-lhe da resiliência e valentia necessárias para quando adversidades batessem à porta.
Hoje, permito-me navegar com as palavras à beira deste rio e contemplar o local onde repousa o idílio saudoso do meu pai, agora submerso pelas águas agigantadas de seu leito. A correnteza poderosa abalou a estrutura da colossal ponte que liga dois municípios, Nova Petrópolis e Caxias do Sul. A força da correnteza derrubou desta vez, como se de gesso fosse, um dos pilares da ponte que foi testemunha da história de vida, amor e sobrevivência do meu velho pai.
Até então, para ele, as notícias das enchentes alarmantes que assolavam o Rio Grande do Sul há uma semana não passavam de imagens de desolação distantes, das quais ele ligava e desligava conforme a conveniência de seu escasso interesse ancião, lutando contra a sonolência. Mas algo íntimo aconteceu, de repente, durante o noticiário. Enquanto eu observava a cena da ponte do rio Caí prestes a desabar, a expressão de meu pai se transformou. Ele pediu que eu mostrasse imagens do celular e fizesse um zoom para poder ver com mais clareza e nitidez a ponte do rio Caí de sua memória. Era como se, dessa forma, ele pudesse aproximar o tempo pretérito à fúria atual do rio Caí, que acabara de ensopar de água as várzeas, arrastar os pastos, inundar os cochos dos animais e cobrir o trajeto onde ainda restavam os rastros dos seus tamancos de colono; o rio que destruiu seus pais, sua casa, sua cama, seus gatos, seus balanços nas árvores, que afogou sua infância. O rio que engoliu suas alegrias, seus amores, suas tristezas e dores e todas as suas escolhas; o rio que levou sua juventude. Meu pai chorou.
Fico emocionada, quase consigo ler os pensamentos dele. A enchente atual acabara de arrombar o cômodo da indiferença em que vivia. Pediu para eu aumentar o volume da TV e falou que uma tragédia deste tamanho não tem reparação fácil, que entendia a dor dos que perderam o pouco e o tudo que tinham. Comentou ser difícil a reconstrução das cidades, das vidas, dos trabalhos e nem podia ter certeza se as pessoas conseguiriam prosseguir, mas tinha fé na força imigrante e no brio do gaúcho. Que eles estavam no sangue.
Pareceu-me, neste momento, que a ponte do rio Caí se reergueu, fazendo com que ele revivesse a grandiosidade de seu passado guardado na saudade. A coragem expressa em sua fala não refletia o nonagenário sem forças da atualidade, mas sim o jovem que precisava erguer a cabeça, manter a esperança diante dos obstáculos e seguir em frente. Reconstruir, apesar da potência das águas, que de tempos em tempos pode virar tudo de cabeça para baixo. E destruir.
*Ana Stela Goldbeck é farmacêutica e bioquímica, mestre em Antropologia Social, pesquisadora e servidora da UFRGS aposentada. Atualmente escritora. Publicou em 2023, pela Editora Libretos, o livro infanto-Juvenil ‘Baby Milo, uma história de porquinhos-da-índia’, e em 2019 a crônica ‘Nego Café’ na coletânea Coisas que as Mulheres Escrevem, pela editora Desdêmona.
Foto da Capa: Freepik AI-Generated
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