O inconformismo com a desorganização das cidades é tão antigo quanto as próprias. A dificuldade de torná-las eficazes é que nós humanos somos desassossegados, insaciáveis no desejo de inventar, experimentar e criar novas formas de viver. E o melhor de tudo é que somos desobedientes, não gostamos de autoridade, ainda que facilmente nos submetamos a ela se ameaçados por forças físicas ou celestiais. Também carregamos defeitos para a vida urbana: como massa, somos indisciplinados e desordeiros.
A sociedade europeia branca — que nos domina e que nos colonizou — vivia em profundo desalento com a explosão demográfica que se abateu sobre suas vilas por ocasião da Revolução Industrial. Ali, a questão chegava às raias da insalubridade. Era preciso fazer uma revolução urbana para os novos tempos da máquina: subjugar e disciplinar o cidadão para que as coisas funcionassem bem. O fordismo deu a pista: uma sociedade hierarquizada, disciplinada e obediente poderia ser tão produtiva quanto suas linhas de montagem de automóveis. Centenas de carros eram fabricados em um dia, tempo que um só homem não faria um único.
Marinetti, no Manifesto Futurista, foi o porta-voz da revolução: “Declaramos que o esplendor do mundo foi enriquecido por uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida com o capô ornado de canos de escapamento como serpentes lançando fogo pelas narinas – um carro de corridas que ruge, matraqueando como uma metralhadora, é mais belo que a Vitória de Samotrácia.” E o manifesto segue com proposições espantosas, misóginas, contra museus e bibliotecas, e de amor à guerra, inconcebíveis nos dias de hoje. A intenção era a de resetar o mundo, ainda que ao custo das grandes guerras que estavam se armando.
Foi o arquiteto Sant’Elia quem apresentou as ideias para a cidade futurista. Le Corbusier, um pouco depois, traduziu o zeitgeist em rigorosa metodologia pragmática, a saber: um zoneamento rígido de acordo com as “funções” humanas – habitar, trabalhar, divertir-se e circular (sic). A cidade e também a casa como “máquina de morar”. Essa proposta exigia, claro, uma reorganização drástica das cidades que os europeus não aceitaram de todo, mas nós brasileiros a recebemos de bom grado. As cidades brasileiras guardam cicatrizes dessa ideia de construção sobre si mesma.
A exceção é Brasília, que nasceu do zero dentro dos princípios corbusianos, garantindo coerência urbanística e ótimo resultado formal, gostemos ou não da compartimentalização das atividades humanas em “funções” ou do rodoviarismo imperante na capital brasileira.
Tudo isso para dizer que lembrei dessas ideias nascidas há mais de cem anos ao ver um vídeo que anda circulando por aí sobre a Cidade Linear a ser construída no deserto da Arábia Saudita. Em poucas linhas, trata-se de um monobloco, oco na parte central, de 170km de comprimento por 200m de largura e 500m de altura, sem ruas ou automóveis. Circula-se ali dentro como num mall com muito verde. Numa caminhada, segundo os arquitetos, se encontra tudo o que se precisa para a vida diária. Para distâncias maiores, metrôs distribuídos em mais de um nível percorrerão a cidade em um ou outro sentido. Ao que parece, a única decisão rotineira será se você quer ir para um lado ou para outro.
O que impressiona no projeto é a artificialidade da cidade. Ela sai das pranchetas pensada em seus mínimos detalhes, com a qualidade de um hotel ou shopping center de luxo. Tudo controlado, do ar condicionado à distribuição de qualquer coisa que seja necessária para uma vida já perfeitamente prevista, afinal as Big Techs sabem mais de nós do que nós mesmos. Do ponto de vista energético e ambiental, perfeita também, é o que assegura o vídeo promocional.
A minha questão é: estamos preparados para viver num lugar aonde nada vai acontecer fora do previsto? Aonde não haverá nada mal resolvido, sem graça e feio até? Sem sótãos e porões para abrigarmos bruxas e fantasmas, como aprendi com Gaston Bachelard em Poética do Espaço? Sem a viela escura que dá medo de acessar à noite? Eu, que não gosto de transatlânticos, me arrepio só de pensar.
Outra pergunta que faço é: como se distribuirão as classes sociais ali dentro? Quem frita o hamburguer de um CEO será seu vizinho de porta ou a estratificação estará rigidamente estabelecida a priori? Ou, mais provável, haverá uma migração externa diária de trabalhadores para fazer essa máquina funcionar? Não por acaso, o projeto está sendo construído na Arábia Saudita, cujo regime é extremamente segregacionista, autoritário e injusto com as mulheres e minorias.
Tem uma cena no vídeo promocional que revela por inteiro a ideologia do futurismo de Marinetti. Eles mostram, numa cena bem feita diga-se de passagem, Londres, Nova Iorque e Riyad sendo espremidas até formarem uma linha que vai sendo encaixotada na forma da cidade linear (aliás, essa ideia de linearidade também vem do início do século passado). A gente se impressiona com a inteligência do gesto em sua racionalidade e organização, mas há nele a ideia do apagamento, a de tudo recomeçar, a de um marco zero. Volta a ideia profética da construção de um novo mundo para uma nova época. Vimos onde isso foi parar: fascismo e totalitarismo.
Sintomaticamente, essas profecias de ruptura histórica não vêm acompanhadas de discursos políticos ou sociais que tenham como pauta a desigualdade entre humanos. São só formais e materiais. Um novo jeito de organizar a produção e consumo de forma limpa para tudo mudar sem nada mudar. Belo futuro verde nos espera!
Se no primeiro futurismo era a máquina e a velocidade a indicar o caminho do futuro, agora é a vez da tecnologia da informação e da inteligência artificial organizarem o viver na cidade sem que haja questionamento sobre as relações entre seus moradores. O que seria, no meu entender, o mais urgente a se pensar. Não me senti à vontade para chamar de cidadãos os moradores da cidade, porque de fato nem todos são. Ainda mais na Arábia Saudita.
Esse futuro, que logo será presente na intenção de seus promotores endinheirados, poderia se chamar neofuturismo e é, outra vez, assustador. Podem me chamar de conservador, mas não consigo ver graça numa cidade que se parece com um transatlântico estacionado. Aliás, esses navios foram a inspiração de Le Corbusier para as Unidades de Habitação projetadas por ele para Berlim e Marselha. Um prato-feito comparado ao banquete que os petrodólares podem construir.