Recentemente fiz uma ecocardiografia pela primeira vez e, ao ficar olhando para aquela tela em branco e preto com aqueles traços delicados em movimentos ritmados, não me contive em comentar com o médico sobre meu fascínio diante da sutileza e delicadeza do órgão e quanto parece uma engenharia delicada e frágil a ponto de que se uma daquelas paredinhas em movimento errar o compasso ou não se fechar o suficiente, aquela máquina pode parar e arruinar tudo. Ele inicialmente concordou com a sutileza e a engenharia cardíaca, mas, quanto à segunda parte, foi categórico:
– O coração é um órgão redundante.
– Como assim, redundante? Questionei curiosamente.
– Redundante, uma câmera pode estar enfartada e ainda assim a outra compensa e faz ele seguir funcionando.
Fiquei presa nessa redundância até o fim do exame (até agora, para ser mais exata) e pensei que, se um órgão vital e delicado como o coração possui essa capacidade de compensação e de suporte, o que dizer do nosso aparelho psíquico? Ninguém acredita ainda (mas deveria) que se nosso aparelho psíquico pifar, a vida pode acabar. De fato, a vida fisiológica pode até perdurar, mas a emocional que sustenta nosso edifício inteiro, como disse Clarice, já são outros quinhentos.
Mas o aparelho psíquico, assim como o coração, também é redundante. Nossa vida emocional pode se organizar, não sem, claro, trabalhar dobrado, e compensar uma área mais comprometida e equilibrar em outra e assim o prejuízo não parecer tão grande. Parece tudo muito engenhoso e complexo, mas também uma grande ficção.
Como a peça que assisti esse final de semana. “Ficções”, baseada na obra Sapiens de Yuval Harari. A talentosa Vera Holtz desenrolava em palco um texto recheado de reflexões sobre nossa ignorância, prepotência e inabilidade de gerenciarmos as engrenagens que nós mesmos, homens sapiens (sábios?) desenvolvemos. Então, ela várias vezes marcava o quanto tudo que nos cerca em relação a teorias, dogmas, crenças e sistemas organizados é uma grande ficção. Parar para pensar nisso desacomoda, desestabiliza nossas vãs certezas. Lembrei de dois filmes incríveis que abordam essa questão do quanto amparamo-nos em uma tal realidade que é sim mera ficção e que justamente por isso não devia ser levada tão a sério.
“Mais estranho que a ficção” conta a história de um fiscal da receita federal, que um dia, absolutamente do nada, começa a ouvir uma voz que narra suas ações, até descobrir em um determinado momento que ele é o personagem principal de um romance de uma escritora conhecida. Recomendo fortemente assisti-lo. Outro que recomendo ainda mais é o “waking life”, bem menos hollywoodiano, onde vários personagens em diálogos interessantíssimos fazem o espectador questionar-se a respeito da garantia (ou falta dela) que temos de saber que nossa vida é de fato a realidade ou então um sonho.
A verdade é que a arte sempre chega para tentar dar conta e nome ao furo existencial que nos acomete e que uns percebem mais e outros menos. Quanto menos enxergamos a ficção e as narrativas que nos envolvem e tentam dar conta da nossa breve passagem nesse mundo, mais suscetíveis (e, a meu ver, pobres de espírito) ficamos à ignorância e a uma vida medíocre no sentido emocional e profundo, muito mais do que material.
A ficção está aí à disposição. Claro que, a depender dos privilégios e base de cada um, ela pode ser mais confortável ou ilusória, mas tudo bem, o coração é redundante, e nossas vidas também.
Boa semana e… ação!
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Foto da Capa: Walking Life / Divulgação