Tia Critídia Lucila arruma os potes de iogurte caseiro que preparara e me oferece um, adoçado com uma calda de ameixas secas.
Conto a ela sobre as últimas novidades dos nossos eventos científicos: – Só se fala em microbioma… Somos uma espécie de nave espacial, uma arca de Noé, com trilhões de microrganismos das mais variadas espécies, particularmente em nossas entranhas, e é a estabilidade desse sistema sociopolítico que determina nossa saúde e mesmo nossos padrões comportamentais. – Não somos nada, Tia! Apenas uma nau…
Por um breve instante orgulho-me, minha Tia por certo me admira.
– E isso lá é novidade, Guri? Tu estás mais por fora do que surdo em bingo. Tratar isso como algo novidadeiro é coisa de quem não conhece ou não respeita o passado. Não estou dizendo que não é importante, só que não venham falar em “descoberta”. Isso de colocar lantejoulas em bolo fecal, o Zygmunt Bauman (1925-2017) explica bem, típico da “modernidade líquida”. Em outras palavras: “churrio”. Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm a forma com a mesma facilidade. Movem-se, fluem, escorrem, esvaem-se, respingam, transbordam, vazam, inundam… Está tudo lá na filosofia desse polonês genial. Fluidez, liquidez são metáforas adequadas para a presente fase da nossa história.
Olho para o potinho, a calda que se mistura torna algo escura a matéria. Tento mudar de assunto, mas ela insiste. – O avanço do conhecimento se dá de forma desordenada e nem sempre atende o que é lógico e sensato. Hipócrates já dizia há quase 2500 anos: somos o que comemos. A questão é: o que comemos? Antibióticos em profusão, lícitos, ilícitos, insanos. Na forma de medicamentos sem critérios, na produção animal, agrotóxicos em profusão, o que mais?
Quando inicia uma discussão, Tia Critídia Lucila parece acender; a energia de um desafio torna-a fluorescente. Achei que aquietara quando limpa as mãos no pano de prato. Ela às vezes me lembra uma mosca doméstica. Ágil, difícil de apanhar em pleno voo.
– Algum desses teus colegas citou Metchnikoff? – brande o pano com a habilidade de um esgrimista: – Touché!
Ilya Ilyich Metchnikoff (1845-1916) estudou ciências naturais na Ucrânia e passou a primeira metade de sua carreira científica como professor universitário itinerante na Rússia, Alemanha, França e Itália. Em 1883, em Messina, na Sicília, descobriu a fagocitose ao realizar experimentos com larvas de estrelas do mar. A descoberta dos macrófagos tornou-o famoso e lhe daria o epíteto de “pai da imunidade inata”. Foi convidado por Pasteur para trabalhar em Paris e, em 1885, após a morte deste, o sucederia como diretor no Instituto. Em 1908, dividiu o Prêmio Nobel com Paul Ehrlich. Apesar de ser mais conhecido por suas contribuições fundamentais para a Imunologia, ganhou grande fama ao propor que micróbios intestinais teriam propriedades saudáveis. No final do século XIX, a principal explicação para a maioria das doenças eram as bactérias “putretativas” do intestino que envenenavam o corpo, levando em muitos casos à remoção cirúrgica do cólon.
Metchnikoff formulou um modelo geral de senescência: essas bactérias secretariam toxinas envenenando células. As células comprometidas seriam alvos para o exército de fagócitos que as destruiriam. O corpo enfraquecido, progressivamente enfermo, finalmente sucumbiria. Mas ele também propôs que era possível fortificar populações bacterianas saudáveis para bloquear esse processo, sustentar a saúde e ampliar a vida.
Na procura por bactérias “amigáveis”, encontrou no iogurte um alimento básico que suspeitava ser responsável pela longevidade dos camponeses em certas aldeias búlgaras. Teorizou que as propriedades do iogurte estabeleciam uma flora intestinal “útil” na promoção da saúde. Um conceito ecológico de equilíbrio que já tem mais de um século, portanto. Seus estudos também foram responsáveis por uma proposta de ciência do envelhecimento e o termo gerontologia foi criado por ele.
– Exageros à parte, da próxima vez já sabes: quando alguém falar em microbiota como “novas teorias”, Metchnikoff na conversa. O mundo esquece-se fácil do que é sólido, do que é História. E não só dos acertos, também e, muito mais grave, dos erros.
– Não lembras da declaração desse tal de Donald quando dos tumultos em Charlottesville?
Tia Critídia agora se enfezara de vez: – “Ódio, fanatismo e violência”, ele proclamou, atribuindo aos dois lados dos manifestantes a mesma responsabilidade pelos tumultos. De um lado, defensores da tal “supremacia branca”, contrários aos negros, imigrantes, homossexuais, judeus… Carregando tochas, símbolos nazistas, suásticas… e dê-lhe agressão. Mas é plausível em agosto de 2017, alguém falando em nome da maior nação do mundo, compare como iguais as duas vozes e intenções? Não aprenderam nada com a infame história universal?
– Cheira mal – lamenta ela. – Cheira muito mal -. Quando o discurso de uma dessas bactérias estúpidas se torna banal, entorna-se o caldo e fermenta o caos.
Por alguns segundos, ela permanece quieta. Tento adivinhar seus pensamentos, Tia Critídia sempre surpreende. Possui o dom de revelar aspectos que vão além de uma superfície opaca, trazem um colorido novo e, por vezes, um diagnóstico preocupante.
A crítica ao esquecimento da figura de Metchnikoff é só um pretexto para o seu discurso. A omissão aos fatos históricos pode ser ignorância, mas em muitas circunstâncias, além de imperdoável erro, gera sofrimento e dor. Vale tanto para o intestino do homem quanto para o trajeto da humanidade.
– Sabe, Guri, iogurte vem do termo turco “yogurt”. Deriva do adjetivo “yogun”, que significa denso, grosso, e do verbo “yogumak”, amassar. “Tornar denso”, é assim que se faz. Densidade e equilíbrio. – Quer mais um potinho?
Aceito de bom grado. Tia Critídia Lucila sorri. Preciso visitá-la mais vezes.
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Foto da capa: Acervo do Autor