Lewis Hamilton cultiva a imagem de ser um sujeito politicamente correto. E não me parece que seja hipocrisia. Sua luta contra o racismo, a defesa de atitudes sustentáveis e a ética no trabalho parecem sinceras, e servem de exemplo para milhões de pessoas. Hamilton tem o perfil característico de quem deve considerar urgente a redução da emissão de gases de efeito estufa (GEEs).
Ele está fazendo esforços para ser carbono neutro. Adota uma dieta vegana desde 2017. Anda menos de avião, principalmente com seu jatinho. E proíbe o uso de plástico no seu escritório. Está realmente se esforçando.
No entanto, a cada temporada de Fórmula 1, Hamilton e seus companheiros emitem 256.000 toneladas de CO2. Aí está o dilema. Para ser de fato carbono neutro Hamilton teria que deixar de pilotar. Isso tem preocupado não só a ele, mas a própria Fórmula 1. Há planos para que a categoria se torne neutra em carbono até 2030, utilizando combustíveis sintéticos e biocombustíveis.
Ainda assim, uma coisa é tornar carbono neutra uma categoria que tem recursos abundantes. Outra coisa é mover de forma sustentável os mais de 1 bilhão de carros e veículos leves que existem no mundo. O fato é que nós não apenas somos totalmente dependentes dos carros, mas também adoramos o conforto e a praticidade que eles proporcionam.
No início do século XX, ter um carro era coisa de gente rica. Quase uma curiosidade. Embora a tecnologia de combustão interna, na qual o combustível é queimado no interior dos cilindros, tenha surgido no século XIX, foi somente a partir dos anos 1920, inicialmente nos Estados Unidos, com os carros de Henry Ford, e a seguir na Europa, que os carros se tornaram realmente populares.
Ainda assim, o mundo esperou até os anos 1950 para ver seu uso disseminar amplamente. Hoje em dia, apesar da frota de mais de 1 bilhão de veículos, o sonho de ter um veículo próprio, seja para uso pessoal ou familiar, seja para uso em seu negócio, continua nos planos de bilhões de pessoas. E isso deve de fato acontecer, já que se estima que boa parte da população que hoje vive abaixo da linha da pobreza no mundo deve ascender para a classe média.
Isso é bom, é claro. Mas essas pessoas todas vão consumir mais carne e laticínios, querer moradias recentes com bons eletrodomésticos e, naturalmente, comprar carros!
O dilema de Hamilton ilustra as decisões difíceis que pessoas e governos terão que tomar. Vimos na coluna de 6/11 que o setor de transportes é responsável por 17% das emissões mundiais de GEEs. Os carros e veículos leves emitem no mundo, atualmente, cerca de 3 bilhões de toneladas de CO2. Esse valor precisa chegar a zero o quanto antes possível. Mas como fazer isso?
A alternativa mais óbvia é a eletrificação da frota. É tecnicamente viável (afinal carros elétricos já estão circulando nas ruas) e tem o grande mérito de reduzir a poluição, o que representa um ganho significativo, principalmente nas grandes cidades. Mas não será fácil.
Primeiramente, temos que considerar um termo pouco conhecido, mas que é fundamental nesse esforço de transição: a densidade energética, que é, numa definição simples, a quantidade de energia por massa, ou peso. Os combustíveis fósseis apresentam uma elevada densidade energética. E são muito baratos. Descontados os impostos, o litro da gasolina sai por menos do que um litro de refrigerante na maior parte dos países.
As melhores baterias utilizadas para mover veículos elétricos hoje em dia, além de serem caras, tem 35 vezes menos energia acumulada do que a gasolina em peso equivalente. Ou seja, os veículos elétricos têm autonomia muito menor. Então, além de arcarem com os custos da renovação da frota, comprando carros novos e caros, as empresas e as pessoas precisarão se adaptar a veículos que precisarão parar para reabastecer mais frequentemente. Ainda será necessária uma grande rede de pontos de recarga específicos espalhada por todos os cantos. E isso custará caro.
Por esses motivos, a adoção massiva de veículos elétricos será muito lenta se não houver um significativo investimento governamental. De fato, mesmo nos Estados Unidos, onde há incentivos à adoção de carros elétricos e as pessoas têm mais recursos para arcar com seus custos, a venda de carros elétricos representa 6% do total. Se continuar assim, nem em 2100 os americanos terão substituído toda sua frota.
Mas investimentos significam dinheiro, que terá que sair de algum lugar, geralmente de opções que rendem mais votos aos políticos, como programas sociais ou incentivos às áreas que mais empregam.
E mesmo que passemos a utilizar somente carros elétricos, restará uma pergunta: como a eletricidade que carrega suas baterias é gerada? Se o mundo continuar produzindo 60% da sua eletricidade com combustíveis fósseis, como o fazemos atualmente, não haverá grande vantagem em termos de redução da emissão de GEEs.
Nós podemos também substituir os combustíveis fósseis por biocombustíveis, como o etanol. A lógica dos biocombustíveis é simples. O carbono obtido por sua queima foi retirado do ar pelas plantas que servem de insumo para fabricação do combustível (no caso do etanol, principalmente cana-de-açúcar ou milho). Ou seja, seriam carbono zero. O Brasil já movimentou grande parte de sua frota com etanol, demonstrando que é uma opção viável, mesmo num país com dimensões continentais. Foi um grande feito tecnológico e logístico.
O etanol e o biodiesel (obtido a partir de óleos vegetais extraídos da soja, algodão, dendê, entre outras) certamente serão muito utilizados no esforço de substituição de combustíveis fósseis, ainda que seu atual processo de produção gere muita poluição – em solos, águas e até partículas no ar.
O problema aqui é outro. Para se produzir biocombustíveis precisamos de terras. As mesmas de onde obtemos alimentos. Em 2050 seremos 10 bilhões de pessoas no mundo, e boa parte delas ainda precisa melhorar seu padrão de alimentação. Se ocuparmos a maior parte das terras férteis do mundo para produzir biocombustíveis, como vamos alimentar tanta gente?
Finalmente, lembremos que o setor de transportes não envolve somente veículos leves. A maior parte das mercadorias, além de pessoas, é transportada por caminhões, aviões e navios. Se substituir veículos leves já é complicado, espere até ver os problemas para fazer isso com os veículos mais pesados. Este será o assunto da próxima coluna.
Uma nota final: lembro novamente que toda a semana, às quintas-feiras, coloco um vídeo adicional na minha conta do Instagram: @marcomoraesciencia aprofundando um ou mais tópicos da coluna da semana. Exclusivo para meus seguidores!
Foto da Capa: Lewis Hamilton | Divulgação