Esse é um manifesto: Reivindico meu direito ao arrepio, para que eu possa desfrutar desse acontecimento a cada tanto, até porque todos os dias me pareceria impossível e não haveria nem graça.
Entendo o arrepio como um dos milagres mais incríveis do corpo humano – perdendo talvez apenas para a capacidade de gerar um outro ser humano. Nosso corpo é uma máquina absurdamente bem engendrada e sua conexão com seu “dono” é uma equação complexa de compreender. As aspas são necessárias. Não somos donos de nosso corpo, ainda que pensemos assim. Podemos alimentar-nos perfeitamente, exercitar-nos, hidratar-nos, e ainda assim, um mal súbito pode nos acontecer, um câncer pode se formar, e assim por diante. Não somos senhores de nosso corpo e, segundo Freud, nosso ego também não é o senhor de sua própria casa, ou seja, não dominamos também a nossa mente, ao contrário do que modalidades ditas modernas de psicoterapia tentem provar. Mas e agora, o que fazer com tanta impotência? Se somos governados por nosso Inconsciente, como nos sentimos donos de nossas vidas de maneira suficiente para que possamos fazer nossas escolhas, travar nossas batalhas diárias e seguir vivendo?
Enquanto psicanalista, um dos meus focos de estudo há muitos anos tem sido a psicossomática: a relação intrincada e indissociável entre mente e corpo. Aí entra o arrepio do começo dessa história. Adoro pensar sobre a maneira como cada sujeito aprendeu a entender seu corpo, sua identidade e sua forma de estar no mundo. Como uma criança compreende o que é uma dor de barriga quando a sente pela primeira vez? Como compreendemos a diferença entre uma dor de barriga por fome de outra por ansiedade ou um alimento estragado que ingerimos? Como uma criança entende que está irritada porque tem sono? Como aprendemos a distinguir um arrepio de emoção de um arrepio de frio? Fisiologicamente o fenômeno é o mesmo, mas a origem e a função deste varia completamente em cada um desses casos.
Ser alfabetizado emocionalmente nessa leitura do próprio corpo vem de nossos primeiros vínculos. Isso pode parecer papo de psicanalista – e até é –, mas meu manifesto do início do texto clama muito mais do que pelo direito ao arrepio. É um clamor contra o empobrecimento de nossas complexidades e a favor do cuidado com a leitura de nós mesmos. A palavra inalienável do título talvez seja utópica demais, porque justamente o que ocorre é estarmos nos alienando demais não só do próprio arrepio, mas também do próprio desejo. Estamos nos escutando tão mal, talvez movidos justamente pela pretensão de ouvir o desejo e a expectativa do outro sobre nós, e abafando de tal forma os gritos de nossos corpos, que fica difícil aprender os dialetos que eles falam. É um dialeto porque cada corpo encontra seu vocabulário, maneirismos, gírias singulares. É um papo solitário, mas necessário, esse de uma pessoa com seu próprio organismo.
Por muitos anos atuei como psicóloga hospitalar acompanhando pacientes oncológicos e seus familiares desde casos onde se estava no início do diagnóstico até outros com desfechos não favoráveis da doença. Leia-se, (e, diga-se também, em voz alta porque já temos dificuldades demais em lidar com ela) a morte. Nesses anos todos de experiência, o contato com as mais diferentes formas de compreensão e relacionamento das pessoas com seus corpos sempre foi algo que intrigou. Como alguém sentia que havia algo de errado com seu corpo, com seu funcionamento “normal” mesmo antes de exames detectarem alguma alteração? E, por outro lado, como alguém com uma doença em estado avançado, com nódulos ou massas grandes e invasoras ocupando espaços grandes em seu corpo, não havia percebido nada? Isso tudo é psicossomática também. Essa fluidez que uns tem mais, outros menos, entre sensações corporais e sensações emocionais e psicológicas.
Não é óbvio, nem simples. É um processo sofisticado, mas que geralmente só se percebe quando ele falha. E ele falha, na maioria das vezes – infelizmente não todas – para nos proteger. Somos seres psicossomáticos e nosso corpo apoia nosso psiquismo quando algo não cabe neste último. Temos enxaquecas, gastrites, alergias, herpes. Todos nós. A grande diferença mora em saber ler esses recados do corpo e parar. Entender que uma dor no peito não é necessariamente um infarto (mas checkups no cardiologistas são recomendáveis, por favor). Então esse é um manifesto ao arrepio também emocional. Que sejamos capazes de se averiguar, se conhecer, corajosos o suficiente para se desvendar e conhecer as próprias sombras. Ontem assisti um vídeo no Instagram de uma psicanalista falando que um processo de análise é sobre fracassar, sobre desentender o que achávamos que entendíamos sobre nós mesmos. É revisitar faltas, buracos, remendos mal feitos que vamos fazendo pela vida para sobreviver.
Sim, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, Caetano. Mas nem todo mundo quer entender porque dói descobrir, eu sei. Mas a transa de um corpo e uma mente que tem intimidade e se escutam mutuamente é muito mais prazerosa, pode acreditar.
E viva o arrepio.
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