O direito real de habitação do cônjuge sobrevivente está previsto no Código Civil, que estabelece que, qualquer que seja o regime de bens, lhe será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Essa é uma norma que visa obviamente proteger a dignidade e o bem-estar do cônjuge sobrevivente, mas que, por outro lado, deixou brechas para alguns abusos e para situações esdrúxulas, pois muitas vezes o patrimônio deixado é muito pequeno para que sobre algo que também beneficie os demais herdeiros e lhes permita uma vida digna ou, o que é pior, mesmo havendo vários bens, permite que o cônjuge sobrevivente escolha outros bens para si e deixe a residência para fora de seu quinhão e ainda reclame do direito real de habitação, o que acarreta em uma batalha judicial que pode levar anos para ter um deslinde.
Outro exemplo, algum cônjuge com má-fé pode inclusive ter dado um jeito de convencer o falecido ou a falecida a vender os outros imóveis quando ele já estava idoso, fragilizado física e mentalmente, transformando-os em dinheiro que desaparece sem explicação e assim acabar ficando com a maior parte do patrimônio do de cujus e ainda continuar a morar na residência do casal em detrimento dos outros herdeiros. O direito real de habitação também pode prejudicar imensamente os filhos do falecido com as mulheres anteriores, pois muitos homens escolhem mulheres bem mais jovens para o segundo casamento, que por sua vez escolhem homens bem mais velhos que já tenham filhos do casamento anterior, enteados esses que podem ser até mais velhos do que a nova mulher e que, em razão disso, provavelmente venham a falecer antes da madrasta, ficando na prática excluídos do direito de usufruir de suas heranças.
Assim, interpretando-se essa norma isoladamente, muitas vezes poderiam ocorrer injustiças com consequências semelhantes a uma “deserdação”, o que, a meu ver, viola o direito à herança dos filhos e sucessores, que é um direito fundamental previsto na Constituição Federal.
Pois bem, em julgamento do Recurso Especial nº 2151939-RJ (2024/022696-4), realizado em 24 de setembro de 2024, com relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que mesmo sem conhecê-la sou fã incondicional pelas posições sempre justas e coerentes, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) atenuou um pouco esse direito ao entender que o direito real de habitação, em situações específicas e excepcionais, pode ser mitigado.
A Ementa da decisão da Terceira Turma, abaixo reproduzida, com certeza abrirá caminho para que injustiças possam ser evitadas já no julgamento em primeira instância ou nos respectivos tribunais de justiça:
“… 2. O propósito recursal consiste em decidir se o direito real de habitação previsto no art. 1.831 do Código Civil pode ser mitigado quando houver um único imóvel a inventariar entre os descendentes e o convivente supérstite possuir recursos financeiros suficientes para assegurar a sua subsistência e moradia dignas.
3. Não há negativa de prestação jurisdicional quando o Tribunal de origem examina, de forma fundamentada, a questão submetida à apreciação judicial e na medida necessária para o deslinde da controvérsia, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte. Precedentes.
4. A normativa que confere o direito real de habitação ao convivente supérstite (art. 1.831 do Código Civil) possui caráter eminentemente protetivo, resguardando tanto o seu direito constitucional à moradia, quanto a preservação dos momentos de afetividade vivenciados no lar que compartilhava com a pessoa falecida. Isto é, “o objetivo da lei é permitir que o cônjuge/companheiro sobrevivente permaneça no mesmo imóvel familiar que residia ao tempo da abertura da sucessão como forma, não apenas de concretizar o direito constitucional à moradia, mas também por razões de ordem humanitária e social, já que não se pode negar a existência de vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges/companheiros com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não somente residência, mas um lar” (REsp n. 1.582.178/RJ, Terceira Turma, DJe 14/9/2018).
5. Inobstante a sua notável envergadura no cenário nacional, o direito real de habitação não é absoluto e, em hipóteses específicas e excepcionais, quando não atender à finalidade social a que se propõe, poderá sofrer mitigação. Eventual relativização do direito real de habitação, somente excepcionalmente admitida, deverá ser examinada de modo casuístico, confrontando-se concretamente a necessidade de prevalência do direito dos herdeiros em face do direito do consorte.
6. O art. 1.831 do Código Civil deve ser interpretado da seguinte maneira: (I) como regra geral, preenchidos os requisitos legais, é assegurado ao cônjuge ou companheiro supérstite o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família; e (II) é possível relativizar o direito real de habitação em situações excepcionais, nas quais devidamente comprovado que a sua manutenção não apenas acarreta prejuízos insustentáveis aos herdeiros/proprietários do imóvel, mas também não se justifica em relação às qualidades e necessidades pessoais do convivente supérstite.
7. No recurso sob julgamento, o Tribunal de origem manteve o direito real de habitação da convivente supérstite sobre o único imóvel a inventariar em razão do falecimento do de cujus, sendo que ao longo do trâmite processual comprovou-se que: (I) a cônjuge sobrevivente recebe pensão vitalícia em montante elevado, possuindo recursos financeiros suficientes para assegurar sua subsistência e moradia dignas; e (II) os herdeiros são os nu-proprietários do imóvel, sendo que não recebem quaisquer outros valores a título de pensão e alugam outros bens para residirem com os seus descendentes (netos do falecido), os quais também poderiam ser abrigados no imóvel inventariando. Logo, na excepcional situação examinada, deve-se relativizar o direito real de habitação em favor dos herdeiros.
8. Recurso especial conhecido e provido para excepcionalmente afastar o direito real de habitação do cônjuge supérstite.”
No seu voto, a ministra mesmo destacou que”
“15. Nada obstante, deve-se perceber que o direito real de habitação não é absoluto e, em hipóteses específicas e excepcionais, quando não atender à finalidade social a que se propõe, poderá sofrer mitigação. Eventual relativização do direito real de habitação, somente excepcionalmente admitida, deverá ser examinada de modo casuístico, confrontando-se concretamente a necessidade de prevalência do direito dos herdeiros em face do direito do consorte.
16. Com efeito, a partir das críticas realizadas pela doutrina especializada, é possível mencionar algumas situações que, quando concretamente verificadas, podem acarretar a preponderância do direito de propriedade em detrimento do direito real de habitação.
17. Exemplificativamente, tem-se a hipótese em que há apenas um imóvel a inventariar, de propriedade exclusiva dos herdeiros (descendentes do de cujos) e, do outro lado, o convivente supérstite que possui outros bens que possam assegurar a sua moradia e subsistência, mantendo o(a) viúvo(a) em uma situação economicamente estável, em prejuízo dos proprietários e herdeiros.
18. Nesse sentido, Ana Luiza Maia Nevares leciona o seguinte:
“[E]m muitos casos, […] não haverá moradia do consorte sobrevivente a se garantir, seja porque ele já é proprietário de imóvel próprio ou tem renda ou patrimônio suficiente para lhe garantir a própria moradia, seja porque recebe na sucessão hereditária bens e direitos que lhe garantem a moradia. Nestes casos, estará ausente a função do direito real de habitação, justificando a sua não incidência” (NEVARES, Ana Luiza Maia. Uma releitura do direito real de habitação previsto no art. 1.831 do Código Civil. ln: MENEZES, Joyceane Bezerra de; TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Autonomia privada, liberdade existencial e direitos fundamentais. p. 451-461. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 456). (grifou-se)
19. Outra situação que causa bastante perplexidade e sugere a relativização do instituto exsurge da oponibilidade do direito real de habitação do consorte em face aos demais integrantes do núcleo familiar em situação de vulnerabilidade. Ou seja, a interpretação literal da legislação autoriza que o(a) convivente supérstite tenha assegurado seu direito real de habitação sobre o único imóvel a inventariar, em prejuízo dos herdeiros que também residiam naquele bem com o de cujos, sejam estes crianças e adolescentes, sejam idosos, sejam pessoas com deficiência.”
No seu voto, a ministra ainda reproduziu o entendimento de alguns dos maiores nomes do direito civil brasileiro. Vale conhecer o entendimento deles:
“21. Sintetizando ludicamente as críticas doutrinárias, ensinam Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald:
“Conquanto a regra estabelecendo o direito de habitação se mostre válida e compatível, em linha de princípio, com o Texto Magno, distorções práticas podem decorrer de sua aplicação. Basta imaginar uma pessoa que faleceu, deixando filhos menores de um primeiro casamento, a quem prestava alimentos para a sobrevivência, e a viúva (ex-cônjuge ou ex-companheiras) e deixando, tão somente, um único apartamento – que havia adquirido anteriormente à relação afetiva e onde residia com a consorte. Embora os filhos tenham o direito hereditário sobre o imóvel, adquirindo-o automaticamente pela regra sucessória (droit de saisine, transmissão automática prevista no art. 1.784 do Código de 2002), a viúva continuará residindo até que venha a falecer. Pior: continuará residindo mesmo que constitua uma nova relação afetiva, podendo, até mesmo, levar o seu novo parceiro para residir com ela no imóvel (que, efetivamente, pertence aos seus enteados que, inclusive, podem estar à míngua, até porque quem contribuía para o seu sustento, já está morto…). Mais grave ainda: o consorte sobrevivo continuará residindo mesmo que tenha bens imóveis residenciais próprios. (FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Volume único. 9. ed. São Paulo: Editora Juspovidm, 2024. p. 1467).
22. Igualmente, leciona Maria Berenice Dias:
“Há sérios questionamentos doutrinários sobre a mantença desse direito, principalmente quando os herdeiros são menores de idade ou incapazes, e que ficam alijados do direito de moradia, em benefício de quem com o qual eles não têm qualquer vínculo. O exemplo sempre lembrado é o das famílias recompostas em que os filhos recebem a titularidade do imóvel, mas o companheiro sobrevivente pode lá residir para sempre. […] O fato de o viúvo ter imóveis próprios não excluiu o direito de habitação. Esta posição jurisprudencial é duramente criticada pela doutrina que vem sustentando a necessidade de fazer uma ponderação entre o direito de moradia do sobrevivente e o direito de propriedade dos herdeiros. Assim, deve ser deixado ao julgador verificar se o não reconhecimento do direito implicará efetivamente sério prejuízo existencial e material ou se ocorrerá a hipótese contrária, caso em que deve prevalecer o direito de propriedade na sua integralidade aos herdeiros” (BERENICE DIAS, Maria. Manual das Sucessões. 9. ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024. p. 138-139). (grifou-se)
Finalizando, vale ressaltar que a mitigação do direito real de habitação do cônjuge sobrevivente é excepcional e casuística, precisa ser comprovada que a manutenção do direito real de habitação do cônjuge sobrevivente acarreta prejuízos insustentáveis aos herdeiros/proprietários do imóvel e não se justifica em relação às qualidades e necessidades pessoais do convivente supérstite. Espero que este artigo lhes tenha trazido um bom entendimento sobre este assunto delicado e desagradável, mas que acaba afetando muitas famílias. Espero que os tribunais sigam esse entendimento.
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