Este texto começou a ser escrito a partir de uma notícia publicada em 24 de abril de 2024 e foi finalizado na data que se comemora o Dia de Portugal. Lá, em abril, finalmente, pela primeira vez, o representante, o chefe maior do governo português, o principal cargo do executivo, manifestou-se em discurso de que seu país tem responsabilidade pelos crimes da era colonial, como tráfico de pessoas na África, massacres de indígenas e saques de bens. Hoje, no dia que escrevo, 10 de junho, 24 cidades, 16 países, em 4 continentes, e aqui, nós, celebramos ser colônia.
Sim, este texto será sobre branquitude.
Fui convidada para um painel, como advogada branca, para tratar do tema, onde os ouvintes seriam gestores e diretores de uma empresa. O coletivo, do qual faço parte, a partir da ideia de unir-se pelo empoderamento econômico do povo preto, atua e promove ações, práticas e iniciativas de sacolejo e de despertar, ou seja, propaga letramento racial para o mundo corporativo.
Alinhando com as gestoras do projeto e levando comigo Cida Bento e o Pacto da Branquitude embaixo do braço, ajustamos um painel para olharmos para as origens mercantis. Cinquenta e um slides, quatro perfis, quatro pessoas da história, com milhões, bilhões, terras e construções, capitalistas, formas de gestão consideradas de sucesso, considerados líderes e de alta vendagem de livros sobre os seus feitos. Juntinhos, somaram, em suas mãos, para além de riqueza para muitas e muitas gerações, milhões de vidas escravizadas e mortas.
Empresariais e empresários deste tupiniquim espaço geográfico denominado Brasil, quem são e de onde vem a riqueza das empresas/ das empresárias/ dos empresários que você admira?
A origem de uma herança brasileira perpassa, historicamente, pela escravização de outros seres? A quem esta ignorância beneficia?
A grande maioria das estátuas de pedras e de concreto, que você vê nos nossos ambientes públicos, bustos ou esculpidos montados em seus cavalos, bandeirantes, governantes, descobridores, tiveram o poder como consequência de pessoas escravizadas. Segundo o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, cerca de 4,86 milhões de pessoas foram escravizadas entre os séculos 15 e 19 e “os monumentos serviram para ancorar a lembrança coletiva, propiciando um programa de memória compartilhado e padronizado, para que a memória local ganhasse credibilidade através da sua assimilação em uma memória nacional visível”.
Sobre ontem e sobre hoje
O que não for posto em palavra, visto e identificado, permanente e latente, não está, não é. Somos seres de linguagem, que se identificam, se enquadram, se definem a partir de palavras: “o humano reconhece-se, apreende espaços e tempos, constrói memórias através de suas falas, histórias e dos relatos que cria. E é enquanto ser de linguagem, a qual supõe um processo de elaboração e esforço, que ele acaba por lançar-se na aventura de (o) ser.”
O negacionismo das origens, em sua essência, refere-se à negação ou distorção de aspectos fundamentais da história e identidade de povos. A negação do impacto do colonialismo, da escravidão e de outras formas de opressão sobre culturas e povos específicos, altera os fatos sobre a exploração e o genocídio, por sugerir descoberta ou conquista.
O racismo se alimenta de desinformação, da falta de memória, das entrelinhas dos livros de história que, ao tratar de descobridores de desbravadores, suprimem assassinatos e dá ao branco povo a percepção errônea de que o racismo é um problema do passado, que as desigualdades raciais atuais são o resultado de falhas individuais. O branco povo insiste em imputar ao ser, e não ao sistema do qual é ator, e que, portanto, faz parte.
Hora de trazer as mulheres para esta conversa. Falei antes de Cida Bento e aqui trago um pequeno trecho da apresentação da sua tese de doutorado: “A omissão e o silêncio de importantes atores do mercado de trabalho, aparecem materializados nas entrevistas com os gestores, que raramente percebem o negro em seu universo de trabalho. Tudo se passa como se houvesse um pacto entre brancos, aqui chamado de pacto narcísico, que implica na negação, no evitamento do problema com vistas a manutenção de privilégios raciais. O medo da perda desses privilégios, e o da responsabilização pelas desigualdades raciais, constituem o substrato psicológico que gera a projeção do branco sobre o negro, carregada de negatividade”
Ao reconhecer e corrigir essas distorções históricas, o país escravizador dentro do seu contexto, portanto, sistema internacional, ou seja, para os lados de lá do meridiano de Greenwich, foi o último a se pronunciar publicamente, ou seja, por lá cada um, cada país, do seu jeito, criando um fundo de recursos internacionais, mandando carta de desculpas, criando museu, fazendo um discurso público, passou a reconhecer as suas histórias.
Esse texto foi escrito, também, quando da semana do dia nacional da trabalhadora doméstica, no feminino, porque ainda, em dados, quem cuida do lar são 92 % de portadoras de vulva.
Todo o atuar doméstico tem origem em práticas de servir e 61% são pessoas pretas, que, em média, ganham e recebem pelas suas tarefas recursos financeiros – pilas, dindim – de cerca de 90% do salário mínimo, ou seja, empobrecidas e quiçá sem deter consigo o mínimo previsto em lei de remuneração.
Para além do outro lado do globo, para além da legitimidade da responsabilidade histórica, até quando vamos continuar entre sussurros quando, no guarda-roupa, você sente falta e instantaneamente lembra de quem limpa com clorofila o seu vaso sanitário, quando na mesa na hora do almoço não há lugar, quando a roupa manchada por cloro foi descartada e descontada do pagamento, quando quem cuida do seu filho tem desconto no seu dia porque foi cuidar do filho dela, quando você se revolta com mais uma licença maternidade concedida na sua equipe, quando ainda somos seres humanos incapazes de reconhecer-se como responsáveis?
Como respiro e inspiração, já que acredito no efeito do que a escrita pode despertar, e trago uma iniciativa da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos e da Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas, o aplicativo Laudelina . Um manual nas mãos calejadas da vassoura, nas telas dos celulares, detalhado sobre os direitos das trabalhadoras domésticas, sobre a jornada de trabalho, os benefícios legais e as proteções respectivas, uma ferramenta para calcular salários, benefícios e rescisões contratuais, ali, entre os aplicativos das redes sociais usuais, além de indicar uma lista das instituições que podem oferecer apoio jurídico e social.
Uma inovação feita pelo hoje, para dar a quem precisa acesso ao que tem de direito, por ontem, mas principalmente pelo amanhã, sem esquecer que celebração sem consciência histórica, sem contextualização não nos faz evoluir. Só nos prende em um passado camuflado propositalmente da história, por quem sempre a escreveu e não quer em linguagem reconhecer.
Celebração pela inovação, isso sim.
*Chris Baladão, bicho raro, formada e por coração advogada, na época em que o curso levava sociais em seu nome, escritora por necessidade de expor a palavra, bailarina porque o corpo exige, professora porque a experiência da vida precisa ser compartilhada.
Foto da Capa: Arquivo do Projeto Monumenta/Porto Alegre
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