Mass Effect é uma série de videogames desenvolvida por um estúdio canadense chamado BioWare, uma empresa tão inovadora e competente que seu destino foi inevitável: foi comprada nos anos 2000 por um império do mal monopolista (no caso, a americana Electronic Arts, popularmente conhecida como EA). Sei que este texto inicia de um modo meio perigoso, porque vou ter que explicar um pouco a trama da série em linhas gerais, o que pode afugentar quem não se interessa por jogos e ainda irritar quem já jogou e conhece tudo isso, mas tentarei ser breve e prometo que vai fazer sentido no final.
Como eu dizia, Mass Effect é uma série composta por uma trilogia que todo mundo gosta quase até o fim e por um jogo derivado, Mass Effect Andromeda, que aparentemente todo mundo odeia. A trama da trilogia original, a única que eu joguei de fato, se passa no final do século XXII, período em que faz apenas 50, 60 anos, que a humanidade desenvolveu tecnologia de viagem espacial e descobriu que há mais de uma espécie inteligente habitando a Via Láctea. A humanidade passa então por um processo de lenta e acidentada adaptação a essa nova comunidade de origens múltiplas, a dos planetas da galáxia, organizados numa federação com sede em uma estação espacial que funciona como uma ONU interplanetária, a Cidadela.
Vistos como recém-chegados apressados e truculentos, os humanos são alvo de desconfiança pelas outras raças da Via Láctea, e não ajuda muito a situação o fato de que o personagem com que você joga na série, o ou a militar Shepard (no jogo você pode escolher se o personagem é homem ou mulher), acaba esbarrando sem querer em uma conspiração que vai se revelando ao longo dos três jogos e que representa a maior ameaça que toda a vida na galáxia já enfrentou: a iminência de novo um ataque dos “Reapers”. Os Reapers são gigantescas máquinas vivas muito poderosas que habitam em alguma outra galáxia e costumam invadir a Via Láctea a cada 50 mil anos para “ceifar” todas as espécies que encontram que tenham desenvolvido sociedades inteligentes e com tecnologia de viagem no espaço (deixando intactas espécies não tão avançadas para garantir que um novo ciclo de desenvolvimento e de nova destruição seja possível nos 50 mil anos seguintes).
Inimigos secundários
Embora o roteiro da série como um todo vá deixando boas ideias pelo caminho à medida que os jogos vão avançando, duas coisas se mantêm constantes: a trama é uma discussão sobre um talvez inevitável embate entre vida orgânica e vida inteligente artificial e sobre necessidade de união em momentos de crise (como é comum em jogos de videogame, no entanto, essa “união” é imaginada em termos militares e vagamente autoritários, o que, parando pra pensar, me leva a entender por que tanta gente da “comunidade gamer” parece sempre pronta para abraçar uma pitadinha de fascismo quando tem a oportunidade (vimos isso faz pouco, aliás).
Já faz uns bons anos que joguei a trilogia Mass Effect (é uma série produzida para o já ultrapassado PS3, e eu decidi não pagar de novo o preço de um jogo novo pela versão remasterizada de algo que eu já tinha, uma vez que a obsolescência programada é a própria base tecnológica desse mercado de games. O que, no entanto, têm me voltado com frequência à mente nestes últimos anos, especificamente, é um elemento que na época da minha primeira jogatina achei um pouco chato.
Ao longo da série, Shepard, o protagonista, vai tomando contato com a existência de uma milícia paramilitar “supremacista humana” chamada Cerberus, que acha que a humanidade deveria ser ainda mais truculenta e se impor no grande concerto político galáctico nem que seja pela força. Uma reviravolta da trama faz até mesmo Shepard aliar-se a eles no segundo jogo. E no terceiro, quando ocorre finalmente a invasão em massa das gigantescas máquinas assassinas, essa organização em particular se converte em um adversário secundário que deve ser enfrentado durante boa parte dos objetivos perseguidos por Shepard e sua equipe, que pretendem garantir os recursos e as condições para fazer frente à ameaça muito maior das IAs assassinas.
A razão para essa interferência constante é que o líder dessa facção em especial, o “Ilusive Man”, é um fanático decidido não a destruir os Reapers, mas a controlá-los e usar seu poder para garantir os interesses supremacistas da espécie humana sobre as demais formas de vida da galáxia. A própria narrativa do game implica a certo ponto que essa oposição “de dentro” movida por ambições equivocadas é bastante comum a cada novo ciclo de ataque dos Reapers porque as máquinas costumam emitir sinais de controle mental que “indoutrinam” parte das forças das espécies que os combatem, criando um efeito “quinta coluna” que impede a união de suas vítimas e garante o sucesso de sua “colheita”.
Inimigo interno
Ao contrário do que muita gente andou falando nos últimos 20 anos, inclusive escritores, tramas de videogames são uma gigantesca bobagem e, por valerem-se de mecanismos narrativos próprios em que a experiência de estar jogando é tão importante quanto a história, a progressão de sua narrativa precisa, de forma costumeira, abraçar o absurdo. Em Mass Effect mesmo, o “grande plano” para combater as máquinas é investir recursos galáticos em uma escala nunca antes vista para construir uma imensa estação espacial cujas plantas foram descobertas em arquivos em ruínas de uma das civilizações anteriores que sucumbiram aos invasores. A questão é que o design da tal “arma de combate” não está concluído, ninguém sabe o que ela deveria fazer quando pronta e mesmo assim começa-se a sua construção. Logo, é sim uma narrativa absurda se você dedicar muita massa cinzenta a pensar nela. A questão é que a narrativa de videogames é imersiva, e enquanto joga você não pensa tanto nessas incongruências.
Agora, essa parte específica da “quinta coluna” que, por sua própria visão do problema, acaba dividindo os esforços, colaborando involuntariamente para a ameaça, foi um elemento que voltou de modo recorrente à minha memória.
Claro, eu dei o exemplo do videogame porque ele de fato me ocorreu, mas essa circunstância da traição interna como um elemento que entrega uma comunidade ou território na mão de sua maior ameaça não é uma coisa de agora, o próprio termo “quinta coluna” usado para a sedição interna é emprestado da Guerra Civil Espanhola – e popularizado internacionalmente pela peça de Hemingway sobre o mesmo tema. Quatro colunas do lado de fora de Madri sitiaram a cidade em nome do golpe fascista de Francisco Franco. A quinta, informal, não oficial, trabalhava por dentro, eram os colaboracionistas e simpatizantes do fascismo franquista prontos a sabotar a resistência da cidade ou mesmo a dividir os já escassos esforços de guerra, facilitando a queda da capital diante da ameaça não devidamente combatida.
O que me pareceu simbólico ao relembrar disso é que “quinta coluna”, tanto o termo como o conceito que ele descreve, costuma ser empregado em situações de altercação bélica ou política, mas sua abrangência vai bastante além. Não só vimos como continuamos vendo no último par de anos uma dramática propensão a um grupo relativamente numeroso em “jogar a favor” de uma ameaça perigosa à vista. Os “indoutrinados” não são mera ficção fantasiosa de jogo eletrônico.
Inimigos da vacina
Em seu livro Metrópole à Beira-Mar: o Rio moderno dos anos 20, uma provocativa obra que pretendia torpedear o mito canônico da hegemonia modernista na Cultura nacional, Ruy Castro abria a narrativa contando como o Rio desafogou no início dos anos 20 o trauma da Gripe Espanhola de 1918. O livro, publicado pouco antes da eclosão da nossa contemporânea epidemia de Covid, apresentava um quadro desesperador da evolução da doença. “Nunca houve igual na história e não poderia ter acontecido em pior momento“, comenta.
Ruy reconstitui com detalhes o que hoje se sabe da eclosão da epidemia. Seus primeiros episódios de contágio e seus sintomas (como não seria de estranhar, bastante similares aos de muitas afecções respiratórias graves):
“Começava por uma aguda dor de cabeça, seguida de calafrios que nenhum cobertor conseguia aplacar. Em seguida vinham as dores em todos os ossos do corpo, a diarreia e a letargia. Devido à oxigenação insuficiente, o rosto ficava roxo ou azulado e os pés, escuros — era a cianose. Sucediam-se sufocações e espasmos de sangue ao tossir — eram os pulmões, cheios de um líquido avermelhado. Em três dias, sobrevinha a morte por parada respiratória.”
Daí, Ruy fala de como a doença evoluiu e qual quadro social encontrou no Brasil (alguns deles, infelizmente, muito familiares aos que também vimos na pandemia que nos coube). Um deles, o uso e a propaganda de remédios ineficazes:
“Numa cultura em que o quinino era visto, até pelos médicos, como um santo remédio, o povo depositou suas esperanças em destronca-peitos, purgantes e preparados à base de alfazema, limão, coco, cebola, vinho do Porto, sal de azedas, cachaça e fumo de rolo — o que, naturalmente, não diminuiu o índice de mortalidade. Uma instituição fornecia canja de galinha contra a gripe. Um laboratório saiu-se com um remédio homeopático, Grippina, ‘fórmula do dr. Alberto Seabra’. A própria Bayer passou a oferecer a aspirina Fenacetina, anunciada como ‘tiro e queda contra a influenza’, e prometendo ‘bem-estar com a rapidez de um raio'”.
Com a precisão de seu texto, a única coisa que Ruy não narrou sobre 1918 mas que vimos em 2020 foi a emergência dos “indoutrinados” partidários do vírus, a turma para quem a Covid não era mais do que “uma gripezinha” que estava apenas matando “os mais velhos”, e portanto não poderia ser usada como justificativa para lockdown em larga escala. A mesma turma não se contentou em apenas “defender o vírus”, mas importou para seu arsenal de argumentos a retórica antivacina, criando um retrocesso em termos de imunização geral que levaremos algum tempo para restabelecer (aliás, acho que o atual governo, eleito entre outras coisas pela virtude de não ser o anterior, deveria estar mais ativo nessa área).
Inimigos da ciência
Em outro livro recente, A Terra Inabitável: uma História do Futuro, o jornalista David Wallace Wells apresenta a catastrófica e detalhada narrativa das consequências futuras do aquecimento global/mudança climática não só para as gerações futuras, mas para esta mesma em que vivemos, dada a rapidez dos efeitos que estão sendo registrados. Alertas vem sendo dados, campanhas vem sendo realizadas, compromissos vêm sendo assinados desde os anos 1970 e ainda assim a maioria das emissões de carbono intensificadoras do efeito estufa aumentaram em escala nunca vista desde 1992, o ano da grande conferência ecológica no Rio.
“Muitos enxergam no aquecimento global uma espécie de dívida moral e econômica, acumulada desde o início da Revolução Industrial, e acham que agora a conta chegou, depois de vários séculos. Na verdade, mais da metade do carbono dissipado na atmosfera devido à queima de combustíveis fósseis foi emitido nas últimas três décadas”, escreve ele.
Ou seja, de todos os motivos possíveis para essa tragédia anunciada, desinformação ou ignorância dos processos não pode ser elencado entre eles:
“São poucas as chances de evitarmos esse cenário. O Protocolo de Kyoto deu em quase nada; nos vinte anos transcorridos desde então, a despeito de todo nosso proselitismo climático, da legislação e do progresso na produção de energia verde, geramos mais emissões do que nos vinte anos anteriores”.
É mais um daqueles casos em que os efeitos nefastos não vêm de falta de informação, mas do excesso dela, muitas vezes por questões políticas muito específicas. A ponto de a ciência acadêmica ter de dividir suas forças muitas vezes na batalha da opinião pública entre não apenas alertar o cidadão médio sobre os efeitos da mudança climática mas também convencê-lo de que ela é real, e não uma farsa conspiratória como espalham os seus tios no zap (empiricamente e sem surpresa nenhuma, é possível encontrar muitas das pessoas engajadas na campanha pró-vírus e antivacina, em outras circunstâncias, cerrando fileiras junto aos negacionistas do clima).
O ponto sem retorno da mudança climática já pode ter passado, e a nova luta agora é para minimizar seus efeitos, ainda assim drásticos. Vi esses dias uma pessoa mais jovem e mais otimista do que eu comentar sua percepção de que, no futuro, talvez 2023, com seus desastres naturais em número recorde em todo mundo, incluindo aí enxurradas, enchentes, calor extremo, vendavais, furacões, tempestades de verão e inverno, seja um marco de virada na consciência humana a respeito da catástrofe climática. Espero que sim.
Mas, ainda assim, talvez ainda tenhamos de disputar espaço com os indoutrinados espalhando em massa os efeitos deletérios da negação. Sem que haja sequer a desculpa de máquinas assassinas gigantes controlando suas mentes no horizonte.
Foto da Capa: Shepard, em versão feminina / Reprodução