“não tenho nada. não posso tirar leite de pedra. não tenho pedra. ela me deixou a palavra, e a palavra é nada nada nada. eu e nada.”
Liana Ferraz
Esta reflexão sentida poderia vir do consultório: exemplos ali não faltariam. Ou de casa, mais raiz, melhor ainda. A coisa é assim: algo precisa ser dito, porque não foi feito. Pode ser alguma falta amorosa ou ética (qual seria a diferença?), algum deslize ou distorção um tom acima do que seria apropriado para o outro, ou mesmo para si. Então, falamos para pedir calma ou prescrever ou dar conselho, proferindo palavras na bandeira da coisa que deveria ter sido e não foi.
Aí é que está. Por mais necessárias que sejam, as palavras provocam uma irritação que poderá esgarçar ainda mais a falta de antes delas. Cientes de que representam justamente tudo isso que faltou, elas não preenchem. Lembro-me aqui de Daniel Stern, cientista-artista que estudou o desenvolvimento de uma criança e chamou a atenção para o paradoxo da chegada da palavra, lá pelos dois anos de vida. Por mais que seja bem-vinda e até mesmo represente o corolário de uma evolução bem-sucedida, ela nunca mais ostentará a verdade que um riso, um choro e um silêncio ostentavam antes da sua chegada. Haverá melhora com ela, mas também a nostalgia de uma perda. Então, em casa ou no consultório, convém com frequência estar junto sem palavras para recuperar algo do que antes foi mais verdadeiro.
Por isso, até mesmo a psicanálise, que apostou boa parte de suas fichas nas palavras, chamando a si mesma de talking cure, vem enfatizando a importância dos primórdios: silence cure. Como se até mesmo o livro dos livros precisasse rever-se e questionar a ideia de que, no princípio, era o verbo. Porque não era. Era o olhar, o toque, o murmúrio, a música. Era o que imaginávamos (sem dizer) para o outro. E, como, de certa forma, em algum de seus conteúdos, isso falhou – e falha sempre -, a palavra será necessária. Para pedir mãe ou leite, pai, cadeira ou filme. Para pedir a presença do outro.
Por isso, talvez, uma imagem vale mil palavras e, juntando-se a ela, a música, o murmúrio, o toque e o olhar. O silêncio, este que sabe o quanto a palavra pode fingir ou mentir, ao contrário de uma presença com sentimentos transbordando pelos poros infantes.
Por isso, talvez, o músico seja tão desejado. Conseguiu prescindir da palavra, se instrumental. E o poeta, entre todos os artistas da palavra, seja o mais marginalizado, ao evocar que o mundo das palavras expressa, inevitavelmente, uma perda. E tenta se aproximar do músico, ao apostar as suas fichas no ritmo e sonhar com o dia em que até mesmo as suas palavras sejam dispensáveis.
Em seu lugar, haverá um corpo atento e silencioso, cuja presença baste para que a alma também possa estar ali.
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Foto da Capa: Gerada por IA