A visão de “um outro mundo possível”, construído a partir de uma concepção mais coletiva, socialmente justa e ambientalmente responsável, está diretamente ligado ao surgimento das primeiras feiras ecológicas no Brasil, o que aconteceu no final dos anos de 1980 em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O movimento inovador nasceu também de forma diferente (em especial à época): homens e mulheres do campo e da cidade, desejosos em ter acesso a um alimento saudável, livre de agrotóxicos e produzidos com total respeito ao meio ambiente e à vida, se uniram numa parceria onde todos no planeta sairiam ganhando.
Nestes mais de 30 anos desta exitosa experiência que deu frutos (o modelo de POA foi exportado para muitas cidades do Brasil e América Latina) foram diversos aprendizados que permitiram a existência das feiras ecológicas da capital gaúcha dentro dos seus princípios e visão. Tomadas coletivas de decisões, participação de agricultores ecologistas e parceiros urbanos (que são muito mais que “consumidores”) na gestão do dia a dia destes empreendimentos populares, incentivo à educação ambiental, palco de debates ideológicos. Para dar um exemplo, construíram uma identidade que chegou a ser reconhecida por Lei Estadual (Lei nº 15.296/2019) como de “relevante interesse cultural do Estado do Rio Grande do Sul”.
Enquanto as feiras ecológicas se desenvolviam e se multiplicavam, a sociedade e o mundo também seguiram o seu caminho. Mas, em especial no campo político/governamental, muitas vezes por trilhas diferentes.
Dita a Constituição Federal, dentro dos chamados Princípios Fundamentais, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (parágrafo único do Artigo 1º). Só que após eleitos não são raros os casos – de quem tem a caneta para assinar as decisões, dentro do chamado poder público – de esquecimento de que eles representam a vontade da coletividade.
Este fato está prestes a pôr em risco a construção de mais de três décadas feitas por quem vive as feiras e das feiras ecológicas da capital gaúcha. Isso porque aqueles que estruturam estes espaços vem pedindo a muito tempo a elaboração da Lei das Feiras Ecológicas da cidade. E a atual gestão municipal, através da Secretaria de Governança Local e Articulação Política (SMGOV), resolveu atender. Mas do seu jeito.
As diferentes visões na construção da Lei das Feiras Ecológicas
A construção da Lei das Feiras é tema de debate dentro das Unidades de Feiras Ecológicas (UFEs) desde 2012. Em 2018, o trabalho foi aprofundado pelo Conselho de Feiras Ecológicas do Município de Porto Alegre (CFEMPOA), órgão representativo que conta com conselheiros de todas as feiras ecológicas, consumidores e agentes governamentais (inclusive da própria Prefeitura da capital).
Todo o esforço (que teve que ser pausado entre 2020 e 2022 por conta da pandemia de COVID-19) era de fazer uma construção conjunta, participativa e democrática, que respeitasse as bandeiras históricas e presentes nas feiras ecológicas desde o seu surgimento. Assim se promoveu debates nas UFEs, reuniões abertas do Conselho e, em 2023, dois Seminários específicos para tratar do tema. Representantes do Conselho também realizaram reuniões com o secretário Cássio Trogildo (SMGOV) para expor os anseios e forma que trabalho vinha sendo desenvolvido.
Paralelamente, a Prefeitura, através da SMGOV, fez uma proposta fruto de sua visão do que seria o melhor e mais correto. Proposta esta reprovada em um dos Seminários do Conselho de Feiras Ecológicas, que solicitou prazo até setembro de 2023 para apresentar a sua sugestão oriunda do amplo debate que vinha realizando.
A partir daí todo o diálogo entre as partes ficou dificultado e a SMGOV buscou promover discussões paralelas com pequenos grupos de agricultores sem respeitar o fórum adequado e representativo para tratar da construção desta importante lei. Atos estes denunciados como antiéticos, arbitrários e equivocados pelo CFEMPOA.
A imposição dos “representantes do povo”
Trabalho há mais de 20 em projetos sociais e ambientais, através de ONGs e associações, e não foram poucas vezes que vi projetos e iniciativas nascerem, como brincávamos, em “salas com ar-condicionado, por pessoas que não botam o pé no barro”. O que normalmente acontecia nestes casos, mesmo quando a intenção era boa, é que as iniciativas não davam certo. Por um motivo muito simples: quem bolou não conhecia a realidade, os princípios, a forma de ser e agir de quem enfrentava a dificuldade.
Mas, no caso em questão, da criação da Lei das Feiras Ecológicas, o processo é pior. Não bastou a dificuldade do diálogo (que pressupõe que um lado fale e o outro escute e pondere a respeito, depois invertendo os papéis). Está havendo um atropelo de um governo que se considera “detentor da caneta” (como escutei o secretário da SMGOV falar em uma reunião), que busca impor sua visão do que considera correto. E com requintes de uma forma de atuação política pouco apreciada por quem está do outro lado da mesa.
No dia 05 de junho deste ano, o Conselho de Feiras Ecológicas realizou o segundo Seminário para tratar da Lei. Entre os convidados presentes estava o secretário Cássio Trogildo, que recebeu em mãos as diretrizes divididas por temas de toda a construção que o coletivo considerava importante haver na nova legislação. E, em seu discurso, o secretário se comprometeu a avaliar o material, buscar consensos e dar retorno dentro do mesmo mês. Apenas um dia após este Seminário, ele encaminhou uma Resolução (002/2023) regrando todo o processo de gestão das feiras ecológicas.
Tal ato rendeu a divulgação de uma nota pública de repúdio e luta por parte do Conselho (clique aqui para acessar). Principal reclamação? Que a Resolução “não contempla as demandas de quem construiu por mais de três décadas as feiras ecológicas de Porto Alegre”.
Problemas da proposta da Prefeitura
O principal é que a Prefeitura retira todo o poder decisório de gestão das feiras daqueles que as fazem, passando-os para a própria prefeitura. E isso tem um enorme impacto!
Alguns exemplos:
- Para a entrada de novas bancas em uma feira, os feirantes levam hoje em consideração a procura por produtos que tragam diversidade e variedade àqueles que buscam seu alimento nestes espaços. Passará a ser por edital, com prioridade para produtores de Porto Alegre (que são importantes, mas tem pouca variedade).
- Inviabiliza estratégias de garantia de produtos nas feiras ecológicas. Ao diversificar produtores por várias regiões do Estado se garante tanto variedade de produtos ofertados quanto minimiza a consequência decorrentes de eventuais dificuldades climáticas em uma região (como perdas por chuva de granizo).
- Desconsidera a importância de questões éticas e de visão socioambiental entre os feirantes, igualando-os a comerciantes tradicionais.
- Permite a entrada de atravessadores nas feiras, terminando com a relação produtor/parceiro(a) urbano tão importante destes espaços.
- Engessa as feiras na organização das suas bancas, não autorizando modificações que venham para melhor atender ao público.
- Acaba com o papel do Conselho de Feiras Ecológicas do município, instância de grande representatividade e atuante na defesa das feiras.
O que querem os atores e atrizes que lutam pelas feiras ecológicas de Porto Alegre?
Uma Lei que contemple:
- A importância das feiras ecológicas como estímulo à produção orgânica com base na agricultura familiar e fortalecendo agroindústrias de pequeno porte.
- A complexidade dos processos envolvidos na criação, organização e funcionamento em experiência acumulada em mais de 30 anos.
- Reconhecimento da sucessão familiar, levando em consideração a forma de organização das propriedades rurais de cultivo ecológico e como estratégia de fixação das famílias no campo (diminuição do êxodo rural).
- Importância do associativismo, cooperativismo e do processo de certificação participativa.
- Definição clara das atribuições do Conselho de Feiras Ecológicas do Município de Porto Alegre (CFEMPOA).
- Regras e incentivos para a criação de novas feiras ecológicas na cidade, como uma estratégia de implementação da Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável.
- Os benefícios socioambientais da produção advindos da produção orgânica.
- Venda direta do produtor(a) para o(a) consumidor(a).
- Direito de autonomia e autogestão pelos feirantes e consumidores das feiras ecológica, como vem acontecendo há mais de três décadas.
Dito isso, a luta continua!
*Elson Schroeder é jornalista da Associação Agroecológica, ativista e integrante do Spin Orgânicos do POA Inquieta